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Art. 218 - Suspensão imediata do direito de dirigir, por Julyver Modesto de Araujo

Sabe aquelas pessoas para as quais você tem que explicar as coisas de forma bem simples, como se estivesse falando com uma criança de 5 anos?

Pois bem, neste texto, vou te explicar sobre este tema como se estivesse falando com uma criança de 5 anos em termos de conhecimento sobre a Legislação de trânsito, ou seja, como se você fosse um Ministro do Supremo Tribunal Federal (em vista da decisão exarada na última sexta-feira, 29MAI20, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.951, quanto ao artigo 218 do Código de Trânsito Brasileiro).

O sistema punitivo do CTB prevê a existência de um total de 6 (seis) penalidades, a serem aplicadas aos infratores de trânsito, conforme artigo 256:

I) advertência por escrito;

II) multa;

III) suspensão do direito de dirigir;

IV) cassação da Carteira Nacional de Habilitação;

V) cassação da Permissão para Dirigir; e

VI) frequência obrigatória em curso de reciclagem.

(Obs.: eram sete penalidades, mas a apreensão do veículo foi revogada pela Lei n. 13.281/16)

Com exceção da multa, que está expressamente prevista em todas as infrações de trânsito, as demais possuem regras próprias para sua imposição, constantes do Capítulo XVI do CTB, com o respectivo processo administrativo regulado pelo Capítulo XVIII.

Destaca-se, para a presente compreensão, a penalidade de suspensão do direito de dirigir, que consiste na retirada temporária da licença concedida pelo Estado e é cabível em duas circunstâncias, nos termos do artigo 261:

1ª) quando o condutor atinge a somatória de 20 pontos em seu prontuário, por infrações cometidas; e

2ª) no cometimento de infrações que preveem, por si só, tal sanção administrativa.

Assim como a formação de condutores depende de um processo específico junto ao órgão executivo estadual de trânsito, para a concessão desta licença, igualmente a sua retirada deve ser adequadamente instruída, por meio de um devido processo legal e garantidos o direito ao contraditório e ampla defesa, o que, além de decorrer de expressa previsão constitucional (artigo 5º, incisos LIV e LV), também consta do próprio CTB (artigo 265), com regulamentação suplementar dada pelo Conselho Nacional de Trânsito, por meio da Resolução n. 723/18, hoje em vigor.

Somente ao final do processo administrativo, é que, analisado cada caso e determinada a dosimetria exata a ser aplicada (já que o artigo 261 prevê limites mínimo e máximo), é que se poderá dizer que se dará início à suspensão, cujo período deve ser inserido no prontuário do condutor, com o consequente recolhimento do seu documento de habilitação, medida administrativa complementar e subsequente à suspensão determinada.

Assim, regra geral, as infrações que preveem as PENALIDADES de multa E suspensão do direito de dirigir (como os artigos 165, 165-A, 173, 174, 175, dentre outros) contemplam, adicionalmente, a MEDIDA ADMINISTRATIVA de recolhimento do documento de habilitação, não com o objetivo de se retirar, incontinenti, o condutor da via pública, mas como mecanismos punitivos que serão levados a efeito posteriormente pelo dirigente do órgão de trânsito competente (autoridade de trânsito), após análise da regularidade do auto de infração lavrado pelo agente fiscalizador ou por equipamento devidamente regulamentado, ou seja, assim como a multa NÃO é imposta automaticamente ao infrator logo que se constata a sua conduta, também não haverá imposição, de imediato, da suspensão do direito de dirigir.

Como se vê, há todo um regramento estabelecido para a punição aos infratores de trânsito, com observância dos direitos constitucionais do cidadão e dos princípios da Administração Pública.

Em 2006, sob pretexto de unificar os critérios da infração de excesso de velocidade, já que a gravidade das infrações e as penalidades eram diferentes a depender do tipo de via, a Lei n. 11.334/06 alterou o artigo 218 do CTB, estabelecendo que, independentemente do tipo de via, o excesso de velocidade em até 20% acima do limite passaria a ser infração média (antes inexistente); o excesso entre 20% a 50%, infração grave; e acima de 50%, infração gravíssima, com multa multiplicada três vezes.

Lamentavelmente, porém, ignorando todas as disposições da Lei que se pretendia alterar (CTB), a Lei n. 11.334/06, erroneamente, estabeleceu, no inciso III do artigo 218 (acima de 50%), as penalidades de multa, suspensão IMEDIATA do direito de dirigir e APREENSÃO do documento de habilitação (importante ressaltar esta última "penalidade", que substituiu, neste artigo, a medida administrativa de RECOLHIMENTO do documento de habilitação, que é, em regra, providência complementar e não sanção).

Além de ter "inovado", com penalidades que NÃO constam do rol sancionatório do artigo 256, a alteração legislativa desconsiderou os princípios elencados acima e, pior, os aspectos práticos para que a suspensão seja aplicada de IMEDIATO: Como isso deveria ocorrer? A suspensão seria aplicada até mesmo antes da multa? O agente de trânsito, mesmo sem competência legal para aplicar penalidades, deveria, neste caso, de imediato, determinar um PRAZO de suspensão ao condutor e retirá-lo da via pública? E como fazer com a completa maioria das infrações de trânsito deste enquadramento que são constatadas via equipamentos medidores de velocidade (radares)? Para tais infratores, a suspensão seria somente posterior? E em que momento? Ou seria lançada no sistema, automaticamente? Sendo assim, se o infrator fosse abordado minutos ou horas após ter sido flagrado pelo medidor de velocidade (radar), deveria ser enquadrado como condutor suspenso na direção de veículo? Como ele teria conhecimento de que fora "suspenso" momentos antes?

Veja-se que são várias perguntas que se impõem ao caso em tela, cujas respostas (ou ausência de) nos levam à conclusão da impossibilidade de que a suspensão do direito de dirigir seja, de alguma forma, imediata.

Importante também consignar que, enquanto a aplicação da multa pela infração de excesso de velocidade é de competência dos órgãos e entidades executivos de trânsito dos municípios ou rodoviários, de acordo com a sua circunscrição (artigos 24, VII e 21, VI do CTB), já a penalidade de suspensão do direito de dirigir é de competência do órgão executivo estadual de trânsito (artigo 22, V), o que traz outra preocupação: como o Detran, responsável pelo prontuário do condutor, teria acesso a uma constatação de infração pelo órgão municipal ou rodoviário, sem instauração de um processo administrativo posterior?

O fato é que, felizmente, desde a alteração do CTB pela Lei n. 11.334/06, os órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito simplesmente ignoraram, na prática, o erro do legislador e, assim como ocorre em todas as demais infrações de trânsito com suspensão direta (sem contagem de pontos), também no artigo 218, III, tem se adotado os mesmos critérios, com instauração do processo administrativo de suspensão após o cadastro da infração no prontuário do condutor (o que somente pode ocorrer depois das instâncias recursais da multa, como prevê o parágrafo único do artigo 290).

Destarte, mesmo com a falha legislativa, o sistema punitivo estava funcionando adequadamente até então. Ocorre que, em 28 de maio pp, o Supremo Tribunal Federal julgou, por maioria de votos, a CONSTITUCIONALIDADE das expressões "imediata" e "apreensão do documento de habilitação" do artigo 218, III, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.951, promovida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

Embora o Relator, Ministro Marco Aurélio, tenha concluído pela inconstitucionalidade de tais expressões, por ofenderem os direitos constitucionais do devido processo legal e da exigência de processo administrativo, garantidos o contraditório e ampla defesa, foi vencedor, por maioria, o voto contrário do Ministro Edson Fachin, do qual se destacam os seguintes trechos:

 

O argumento de violação dos princípios do contraditório e da ampla defesa, contudo, não deve prevalecer. A leitura do dispositivo em comento, art. 218, III, CTB, deve ser sistemática em relação ao diploma legal como um todo. A melhor interpretação do dispositivo permite concluir que a suspensão imediata do direito de dirigir será aplicada pela autoridade competente de maneira conforme ao procedimento previsto no art. 281 e seguintes do Código de Trânsito Brasileiro, asseguradas as garantias constitucionais inerentes ao devido processo legal.

Ademais, conforme bem ressaltou a d. Procuradoria-Geral da República em parecer colacionado aos autos, as medidas previstas pelo dispositivo impugnado, ou seja, a suspensão imediata do direito de dirigir e a apreensão do documento de habilitação, têm evidente natureza acautelatória, providências administrativas que visam assegurar a eficiência da fiscalização de trânsito em casos de flagrante de prática de ato classificado como de gravíssimo risco para a segurança pública. Em que pesem as alegações do requerente, não se trata de aplicação sumária de penas administrativas, portanto. Não verifico, assim, violação dos princípios do contraditório e da ampla defesa. De se considerar, ademais, que, em caso de injustiça ou abuso, tanto o contraditório como a ampla defesa estarão assegurados, embora seu exercício seja postergado, sem diminuição de eficácia ou sem que se verifique ofensa a direitos fundamentais ou à proporcionalidade.

 

Veja-se que, apesar de reconhecida a necessidade de obediência ao rito do processo administrativo constante do CTB, para a aplicação da penalidade de suspensão do direito de dirigir, a decisão em apreço abre espaço para especulações acerca da possibilidade da “suspensão imediata do direito de dirigir e apreensão do documento de habilitação” (penalidades que, repita-se, não têm previsão legal) serem impostas pelo agente de trânsito, no momento da fiscalização, como “providências administrativas, de natureza acautelatória, que visam assegurar a eficiência da fiscalização de trânsito em casos de flagrante de prática de ato classificado como de gravíssimo risco para a segurança pública”, o que esbarra nas mencionadas dificuldades práticas de aplicação, em contrariedade a todo o sistema punitivo previsto no CTB e, pior, poderá acarretar, em obediência ao caráter vinculante da decisão da ADI, problemas decorrentes da ação dos agentes de trânsito que venham a retirar a CNH das mãos do condutor, para a pretensa suspensão IMEDIATA (sabe-se lá como e por quanto tempo), quando abordado no cometimento da infração do artigo 218, inciso III.

Diante de todo o exposto, vislumbro a imperiosa necessidade de alteração do CTB, corrigindo-se o impasse causado pela modificação legislativa anterior, agora referendada pela decisão do Supremo Tribunal Federal, a qual ocasionará transtornos à atuação do Sistema Nacional de Trânsito. 

Para que não haja dúvidas de interpretação, e mantendo-se a penalidade que já vem sendo imposta de maneira correta pelos órgãos de trânsito, à infração de excesso de velocidade, que constitui um dos maiores fatores de risco à segurança viária, mas de maneira formalmente adequada, após o devido processo administrativo, compatibilizando esta infração com o sistema punitivo de trânsito, o ideal seria alterar para a seguinte redação:

 

Art. 218.  Transitar em velocidade superior à máxima permitida para o local, medida por instrumento ou equipamento hábil:

...

III - quando a velocidade for superior à máxima em mais de 50% (cinquenta por cento):

Infração - gravíssima;

Penalidade - multa (três vezes) e suspensão do direito de dirigir;

Medida administrativa - recolhimento do documento de habilitação.

 

São Paulo, 01 de junho de 2020.

 

JULYVER MODESTO DE ARAUJO, Consultor e Professor de Legislação de trânsito, com experiência profissional na área de policiamento de trânsito urbano de 1996 a 2019, atualmente Major da Reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo; Conselheiro do CETRAN/SP desde 2003; Membro da Câmara Temática de Esforço Legal do Conselho Nacional de Trânsito (2019/2021); Mestre em Direito do Estado, pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP, e em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública, pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da PMESP; Especialista em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de SP; Coordenador de Cursos, Palestrante e Autor de livros e artigos sobre trânsito.

 

AS IMAGENS EXIBIDAS SÃO MERAMENTE ILUSTRATIVAS. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. ATUALIZADO EM: 20/09/2017. POWERED BY TOTALIZE INTERNET STUDIO.  Site map