Art. 67 - O fechamento da via pública e as responsabilidades dos órgãos de trânsito, por Julyver Modesto de Araujo
É comum nos depararmos com situações de fechamento das vias públicas, tanto pelo poder público, como regra, quanto pela própria comunidade, como exceção, decorrentes de obras, eventos, comemorações etc. Importa-nos, neste estudo, verificar a legalidade destas situações, bem como as responsabilidades dos órgãos de trânsito.
Inicialmente, ressalta-se que o planejamento, projeto, regulamentação e operação do trânsito são atividades de competência, nas vias rurais, dos órgãos e entidades executivos rodoviários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e, nas vias urbanas, dos órgãos e entidades executivos de trânsito municipais, nos termos dos artigos 21, inciso II e 24, inciso II, do Código de Trânsito Brasileiro (CTB).
Portanto, havendo a necessidade de bloqueios e desvios do trânsito, pode o órgão responsável realizar o fechamento da via pública, levando-se em consideração, além das circunstâncias específicas de cada caso, a finalidade de preservação do interesse público.
Importante esclarecer àqueles que se socorrem do direito de ir e vir para questionar as limitações impostas pelo órgão público que o artigo 5º, inciso XV, da Constituição Federal (CF/88) estabelece que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”, ou seja, o texto constitucional admite restrições, nos termos da lei.
Como ato administrativo, adotado pela Administração pública, é de se registrar que o bloqueio do trânsito possui determinados atributos, conforme a melhor doutrina de Direito Administrativo, dos quais destacamos a coercibilidade e a auto-executoriedade, que se traduzem, respectivamente, na obrigatoriedade de aceitação pelos administrados e na desnecessidade de intervenção do Poder Judiciário para sua validade.
Prova disso é que o artigo 209 do CTB estabelece, como infração de trânsito de natureza grave, sujeita à penalidade de multa, a transposição, sem autorização, de bloqueio viário, com ou sem sinalização ou dispositivos auxiliares.
Feitas estas considerações iniciais, quanto à legalidade do fechamento da via pública, realizado pelo órgão de trânsito com circunscrição sobre a via, vejamos os aspectos que circundam a questão, em especial no que se refere às obrigações dos órgãos de trânsito e dos responsáveis pelas obras ou eventos motivadores do bloqueio da via.
Dispõe o artigo 95 do CTB:
§ 1º - A obrigação de sinalizar é do responsável pela execução ou manutenção da obra ou do evento.
§ 2º - Salvo em casos de emergência, a autoridade de trânsito com circunscrição sobre a via avisará a comunidade, por intermédio dos meios de comunicação social, com quarenta e oito horas de antecedência, de qualquer interdição da via, indicando-se os caminhos alternativos a serem utilizados.
§ 3º - A inobservância do disposto neste artigo será punida com multa que varia entre cinqüenta e trezentas UFIR, independentemente das cominações cíveis e penais cabíveis.
§ 4º - Ao servidor público responsável pela inobservância de qualquer das normas previstas neste e nos arts. 93 e 94, a autoridade de trânsito aplicará multa diária na base de cinqüenta por cento do dia de vencimento ou remuneração devida enquanto permanecer a irregularidade.
Da disposição acima, destacamos as quatro etapas estabelecidas para a realização de obras e eventos na via pública:
1ª. Prévia permissão.
O artigo 5º, inciso XVI, da CF/88 reza que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”. Assim, a prévia permissão a que se refere ao artigo 95 do CTB não pode constituir condição para a aprovação do direito de reunião, consagrado constitucionalmente, mas se faz necessária para que a Administração pública avalie cada situação, preparando-se para garantir à coletividade o direito ao trânsito em condições seguras, dever dos órgãos de trânsito, nos termos do § 2º do artigo 1º do CTB.
Neste aspecto, vejam que o artigo 95 se aplica apenas aos casos em que ocorrer perturbação ou interrupção da livre circulação de veículos e pedestres, ou colocar em risco a segurança, devendo-se, portanto, avaliar se aquele direito de reunião está sendo exercido de forma pacífica, nos termos estabelecidos pelo dispositivo constitucional.
A participação dos órgãos de trânsito na realização da obra ou evento, conforme o artigo 95, não se restringe apenas à permissão, já que os seus parágrafos, a seguir explicados, estabelecem outras obrigações, como a prestação de informações à comunidade, a fiscalização da obediência à regulamentação estabelecida e, até mesmo, a implantação da sinalização (como obrigação residual), já que o responsável pela obra ou evento, via de regra, não possui os mecanismos hábeis para a sinalização, como cones, cavaletes, tapumes etc.
Cabe considerar que não há a previsão expressa de cobrança de taxa pelos serviços prestados pelo órgão de trânsito, no fechamento da via pública, diferentemente do que ocorre com o artigo 67 do CTB, que trata de provas ou competições esportivas, nos seguintes termos:
“Art. 67 - As provas ou competições desportivas, inclusive seus ensaios, em via aberta à circulação, só poderão ser realizadas mediante prévia permissão da autoridade de trânsito com circunscrição sobre a via e dependerão de:
...
IV - prévio recolhimento do valor correspondente aos custos operacionais em que o órgão ou entidade permissionária incorrerá”.
Não obstante, verificando-se nossa Carta magna, no que concerne à instituição de tributos (gênero no qual se insere a espécie taxa), é possível instituir legalmente a cobrança de taxa pela prestação desse tipo de serviço, discriminando-se, na lei de criação, os critérios para delimitação, valoração e forma de cobrança, o que já vem sendo adotado em alguns municípios brasileiros, baseando-se nos artigos 30, 145 e 156 da CF/88:
...
III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;
...
II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;
Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
...
III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar. (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 3, de 18.3.1993)
2ª. Sinalização do local.
Dispõe o § 1º do artigo 95 que a obrigação de sinalizar é do responsável pela execução e manutenção da obra ou evento; entretanto, deve-se observar o disposto no artigo 80 do CTB, que restringe a implantação apenas da sinalização regularmente prevista, vedando-se a utilização de qualquer outra.
Assim, é de se consultar o Anexo II do CTB (alterado pela Resolução do CONTRAN nº 160/04), que, em seu item 3.7, trata dos dispositivos de uso temporário, conceituando-os da seguinte forma:
“São elementos fixos ou móveis diversos, utilizados em situações especiais e temporárias, como operações de trânsito, obras e situações de emergência ou perigo, com o objetivo de alertar os condutores, bloquear e/ou canalizar o trânsito, proteger pedestres, trabalhadores, equipamentos etc.”
Tais dispositivos, antes identificados nas cores amarela e preta, e atualmente nas cores laranja e branca (conforme nova configuração, estabelecida pela Resolução 160/04, que deve ser implantada, obrigatoriamente, até 30/06/07, de acordo com a prorrogação de prazo dada pela Deliberação do CONTRAN nº 50/06), são os seguintes: cones, cilindros, balizadores móveis, tambores, fitas zebradas, cavaletes (articulados e desmontáveis), barreiras (fixas, móveis, cancelas e plásticas), tapumes, gradis, elementos luminosos complementares e faixas.
Com exceção das empresas especializadas que freqüentemente realizam obras ou eventos ou daquelas situações que não demandam tanta sinalização, é fato que o responsável pela obra ou evento não terá disponível facilmente a sinalização de trânsito regularmente estabelecida, acima tratada. Ademais, a implantação do sistema de sinalização constitui atribuição de competência do órgão de trânsito, conforme os artigos 21, III; 24, III e § 1º do artigo 90 do CTB, premissas a partir das quais podemos concluir pela responsabilidade subsidiária do órgão de trânsito, que, nos termos anteriormente explanados, poderá cobrar pelos custos operacionais da implantação da sinalização.
3ª. Informação à comunidade.
A informação à comunidade, com antecedência mínima de 48 horas, a respeito do fechamento da via pública, somente não se exigirá nos casos de emergência, em que o bloqueio tenha ocorrido excepcionalmente, por situações extremamente pontuais.
Veja-se que, além da informação quanto ao fechamento da via, é obrigatória a indicação dos caminhos alternativos.
Os meios de comunicação social, mencionados no § 2º do artigo 95, são aqueles que, efetivamente, cumpram com o seu papel de informação, devendo o órgão de trânsito avaliar qual é a forma mais eficiente para atingir a comunidade usuária das vias em que se operou o bloqueio de trânsito, podendo-se utilizar os meios escritos (jornal, revista, panfletos), sonoros (radiodifusão, propaganda por alto-falante), ou audiovisuais (divulgação em canais televisivos regionais).
Vale destacar que, entre os meios de comunicação social, encontramos também as faixas de pano, que, a bem da verdade, constituem, como já exposto, tipos de dispositivos de uso temporários de sinalização.
Por ser postura extremamente comum, aproveitamos para ressaltar a proibição de propagandas em toda e qualquer sinalização de trânsito, incluindo-se as faixas de pano, nos termos do artigo 82 do CTB:
Art. 82 - É proibido afixar sobre a sinalização de trânsito e respectivos suportes, ou junto a ambos, qualquer tipo de publicidade, inscrições, legendas e símbolos que não se relacionem com a mensagem da sinalização.
Verificadas as três etapas anteriores, chegamos à fiscalização do cumprimento de tais disposições, ou seja, quais são as conseqüências para o fechamento irregular das vias públicas, seja por não estar autorizado, não sinalizado ou não informado à comunidade.
Daqui, temos dois desdobramentos: a aplicação de penalidade ao responsável pela irregularidade e a punição ao servidor do órgão de trânsito que inobservou o preconizado na lei.
A competência para a fiscalização do artigo 95, aplicação de penalidades e arrecadação de multas é dos órgãos e entidades executivos rodoviários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição, nas rodovias, e dos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, nas vias urbanas.
Por se tratar de imposição de penalidade, entendemos como aplicável o processo administrativo de trânsito, excluindo-se o atinente à elaboração do auto de infração, notificação da autuação e defesa da autuação, pois tais etapas se referem apenas à ocorrência de infrações de trânsito, que não é o caso. Assim, na aplicação de penalidade por inobservância ao artigo 95, deve a autoridade de trânsito expedir a notificação de penalidade, nos termos do artigo 282 do CTB.
Quanto ao valor da multa, embora o artigo 95 traga como referência a UFIR, quantificando-a entre 50 e 300 unidades, a exemplo do que hoje ocorre com as multas por infrações de trânsito deve-se grafar o seu valor em reais, tendo em vista a extinção da UFIR em 26/10/00, com a Medida provisória nº 1.973-67, e considerando o seu último valor de vigência, que era de 1,0641; portanto, a multa deve variar entre R$ 53,20 e R$ 319,23.
A determinação do valor exato da multa depende da análise das circunstâncias de cada caso, havendo liberdade de escolha pela autoridade de trânsito, no exercício do seu poder discricionário, levando-se em consideração os critérios de conveniência e oportunidade e, no caso de pagamento até o vencimento, deve ser concedido o desconto de 20 %, nos termos do artigo 284 do CTB.
As demais disposições do processo administrativo de trânsito são, igualmente, aplicáveis ao presente caso, como recurso em primeira e segunda instâncias.
A aplicação da penalidade de multa não isenta os responsáveis pela irregularidade das cominações cíveis e penais cabíveis, como prevê a parte final do § 3º do artigo 95, disposição de certa forma redundante, já que toda ação ou omissão contrárias à lei têm como possíveis conseqüências as punições nas três esferas (administrativa, cível e penal), conclusão consubstanciada na chamada tríplice responsabilidade.
Ainda na esfera administrativa, podemos relacionar duas infrações de trânsito que poderão estar presentes no fechamento irregular da via pública, a saber:
Art. 245 - Utilizar a via para depósito de mercadorias, materiais ou equipamentos, sem autorização do órgão ou entidade de trânsito com circunscrição sobre a via:
Infração - grave.
Penalidade - multa.
Medida administrativa - remoção da mercadoria ou do material.
Parágrafo único - A penalidade e a medida administrativa incidirão sobre a pessoa física ou jurídica responsável.
Art. 253 - Bloquear a via com veículo:
Infração - gravíssima.
Penalidade - multa e apreensão do veículo.
Medida administrativa - remoção do veículo.
Entretanto, a exemplo do que ocorre com a aplicação da multa pelo artigo 95, resolvida a dificuldade técnica atual, nada impede que a autoridade de trânsito expeça a notificação da autuação em nome da pessoa física ou jurídica responsável.
As cominações cíveis cabíveis ao presente caso referem-se às eventuais indenizações devidas àqueles que, se sentindo ofendidos com a irregularidade constatada, ajuizarem a competente ação judicial para a reparação de danos.
No tocante às cominações penais, não há um tipo penal específico para o presente caso, podendo, conforme cada situação, configurar crimes próprios das condutas que cercarem a irregularidade praticada.
O outro desdobramento da fiscalização do artigo 95 é representado pelo dever de vigilância, inerente à Administração pública, em relação ao servidor do órgão e entidade de trânsito responsável pelo cumprimento das disposições legais aqui tratadas, estabelecendo o § 4º do artigo 95 que a autoridade de trânsito deve aplicar ao funcionário desidioso multa diária na base de 50 % do dia de vencimento ou remuneração devida, enquanto permanecer a irregularidade.
Tal disposição é questionável do ponto de vista jurídico, em especial por dois motivos: primeiro, porque não há, necessariamente, entre autoridade de trânsito e o servidor responsável uma subordinação hierárquica, necessária para a aplicação de punições decorrentes do exercício do poder hierárquico de que goza a Administração pública; segundo, muito mais importante, porque o desconto de remuneração previsto, sem o devido processo legal e sem a garantia do contraditório e da ampla defesa, contraria os direitos fundamentais estabelecidos nos incisos LIV e LV do artigo 5º da CF/88.
Concluindo:
O fechamento da via pública pelo órgão de trânsito ou rodoviário, com circunscrição sobre ela, é legalmente admitido, quando observadas as disposições do artigo 95 do CTB, e considerando-se os princípios da Administração pública, entre eles o da finalidade, que se relaciona com o interesse público.
As responsabilidades dos órgãos de trânsito estão consubstanciadas em quatro etapas: prévia permissão para a realização da obra ou evento, implantação da sinalização de trânsito; informação à comunidade quanto à interdição (exceto em casos de emergência) e fiscalização do cumprimento das etapas anteriores, com a aplicação de penalidades aos infratores (sendo recomendável, entretanto, não incidir na diminuição do vencimento do servidor público, por ser medida de duvidosa inconstitucionalidade).
Por último, lembramos do disposto no § 3º do artigo 1º do CTB, que contempla a responsabilidade objetiva dos órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito, por AÇÃO, OMISSÃO ou ERRO na execução de serviços que garantam o exercício do direito ao trânsito seguro, o que evidencia a necessidade de obediência aos preceitos ora tratados.
JULYVER MODESTO DE ARAUJO, 1º Tenente da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Conselheiro do CETRAN/SP, Coordenador e Professor de cursos na área de trânsito, Bacharel em Direito, Pós-graduando em Direito público pela Escola Superior do Ministério Público e Autor de livros e artigos sobre legislação de trânsito, além do blog Código de Trânsito Brasileiro Comentado (http://ctbcomentado.blogspot.com).