Art. 262 - Mudanças na “Lei Seca”, por Julyver Modesto de Araujo
Na década de 1920, nos Estados Unidos, ficou conhecida como “lei seca” a norma que proibiu, totalmente, a fabricação, distribuição e venda de bebidas alcoólicas, em vigor de 1920 a 1933 e que deu fama e fortuna aos gangsters, como Al Capone. Hoje, a denominação utilizada no Brasil nada tem a ver com a total restrição de consumo de bebida alcoólica, mas se trata de um nome popular, dado a uma Lei que tem um objetivo muito mais nobre, que é SALVAR VIDAS. Na verdade, ninguém é proibido de beber, desde que não pretenda dirigir veículo automotor.
Em 2008, após a tramitação legislativa de Medida Provisória que proibia o comércio de bebidas alcoólicas nas rodovias federais, foi publicada a Lei nº 11.705/08, que alterou alguns artigos do Código de Trânsito, com o objetivo de estabelecer “alcoolemia zero” e de impor penalidades mais severas aos condutores sob influência de álcool – é justamente esta norma que ficou conhecida como “Lei seca”.
Com a sua vigência, o assunto se tornou cada vez mais motivo de discussão na sociedade brasileira, a partir, principalmente, do incremento da fiscalização de trânsito e, obviamente, problemas surgiram, com diferenças de interpretação jurídica sobre as novas regras impostas, sendo a mais importante delas quanto à punição criminal, pelo artigo 306 do CTB, dos condutores que não se submetem à comprovação da quantidade de álcool no organismo, tendo em vista que a redação deste dispositivo previa um limite mínimo para que se configurasse a infração penal.
Para proporcionar um maior rigor punitivo à conduta da “embriaguez ao volante” e dirimir as dúvidas surgidas, no final de 2012, foi publicada a Lei nº 12.760/12, que alterou os artigos 165, 276, 277, 306 e 262 (este último, sem qualquer relação com a questão principal), sobre os quais apresentaremos, de maneira mais didática possível, os comentários a seguir:
Artigo 165 (infração de trânsito)
Permanece o mesmo texto legal, relativo à conduta infracional: “Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”; entretanto, o valor da multa passou a ser multiplicada por dez, ou seja, R$ 1.915,40; sendo duplicada, na reincidência em doze meses (R$ 3.830,80);
A medida administrativa de retenção do veículo até apresentação de condutor habilitado, embora não necessitasse de complemento expresso, prevê agora, taxativamente, que deve ser aplicado o disposto no § 4º do artigo 270: “Não se apresentando condutor habilitado no local da infração, o veículo será recolhido ao depósito, aplicando-se neste caso o disposto nos parágrafos do art. 262”.
O recolhimento do documento de habilitação, embora mantido como medida administrativa, deve ser visto com ressalvas: entendemos que esta providência deva ser adotada apenas ao término do processo administrativo destinado à penalidade de suspensão do direito de dirigir (já que este é o seu fundamento), nos termos do artigo 265 do CTB e artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal. O recolhimento, de imediato, pelo agente de trânsito (como vem ocorrendo em alguns Estados brasileiros) não tem qualquer serventia, cria um ônus maior ao órgão de trânsito (com uma burocracia desnecessária de recolhimento e entrega dos documentos) e deixa de considerar dois aspectos importantíssimos: I) a CNH é documento de identidade (artigo 159), sendo, portanto, proibida a sua retenção, conforme Lei federal nº 5.553/68; e II) a CNH é de porte obrigatório, quando da condução de veículo automotor, sendo válida somente no original (artigo 159, §§ 1º e 5º) e, portanto, recolher-se a CNH equivale a impedir a condução de veículo, sem qualquer processo administrativo.
Artigo 276 (nível de alcoolemia)
Continua a previsão quanto à alcoolemia “zero”, instituída desde a Lei nº 11.705/08, inovando-se quanto à possibilidade de que a quantidade de álcool no organismo do condutor seja medida pelo ar alveolar (expelido pelos pulmões), já que a redação anterior apenas mencionava que “qualquer concentração de álcool por litro de sangue” sujeitava o condutor às sanções do artigo 165 (embora sejam equivalentes e, portanto, a medição do etilômetro já vinha sendo aceita normalmente, a previsão expressa exclui qualquer interpretação equivocada sobre a validade do teste de ar).
O parágrafo único previa que as margens de tolerância, para casos específicos, seriam determinados por “órgão do poder executivo federal”, o que acabou sendo regulamentado diretamente pelo Poder Executivo, por meio do Decreto nº 6.488/08, que estabeleceu a margem de tolerância para todos os casos, até definição, pelo Contran, dos casos específicos: 2 decigramas de álcool por litro de sangue, equivalentes a 0,1 miligrama de álcool por litro de ar alveolar.
Na redação atual do parágrafo único do artigo 276, cabe ao Contran determinar margens de tolerância, não mais para “casos específicos”, mas toda vez que utilizado aparelho de medição, sendo mantidos os parâmetros estabelecidos pelo Decreto, nos termos da Deliberação Contran nº 133/12, publicada em 26/12/12.
Artigo 277 (comprovação da influência de álcool)
Foi retirada a expressão “sob suspeita” do texto legal, permitindo que qualquer condutor, envolvido em ocorrência, ou alvo de fiscalização de trânsito, seja submetido aos respectivos exames e testes, para comprovação da embriaguez.
Passa a ser possível caracterizar a influência de álcool, para configuração da infração de trânsito, mediante imagem, vídeo, constatação de sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora ou produção de quaisquer outras provas em direito admitidas (enquanto não editada nova norma a respeito, entendemos que são válidos os sinais notórios previstos na Resolução nº 206/06).
Como não foi revogado expressamente o § 3º do artigo 277, que havia sido incluído pela Lei nº 11.705/08, é de se concluir que continua a possibilidade de imposição de multa pela recusa do condutor à submissão aos exames; todavia, como agora é prevista uma forma mais ampla de configuração da infração, aceitando-se, inclusive, a captação de imagens e vídeos do condutor, que demonstrem os sinais notórios da embriaguez, a recusa somente será relevante quando estes sinais estiverem presentes.
Artigo 306 (crime de trânsito)
Para a configuração do crime, não há mais a necessidade de uma quantidade mínima de álcool no organismo do condutor, bastando que se verifique a alteração da capacidade psicomotora, o que pode ser atestado de duas formas: I) pela concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou 0,3 miligramas de álcool por litro de ar alveolar; OU II) pela constatação de sinais notórios (até que haja nova regulamentação, os indicados pela Resolução do Contran nº 206/06).
Portanto, no caso do crime, a quantidade mínima não é mais condição elementar do tipo penal, mas apenas uma das formas de comprovação da sua ocorrência; assim, devem ser conduzidos ao Distrito policial, para providências de polícia judiciária, todos os condutores que tiverem sinais notórios da influência de álcool ou, independente destes sinais, se o resultado do etilômetro for igual ou superior a 0,34 mg (considerando-se o erro máximo admissível, conforme Portaria Inmetro 006/02).
O condutor possui o direito à contraprova, conforme § 2º do artigo 306, em sua nova redação; desta forma, o agente de trânsito deve sempre orientar ao condutor fiscalizado de que a lei lhe faculta demonstrar que não se encontra sob influência de álcool – esta explicação é muito importante, pois o teste do etilômetro deixa de ser tratado como um dever, para ser previsto, na própria lei, como um direito do condutor; isto significa que se ele não quiser fazer uso deste direito, a constatação dos sinais notórios pelo agente, corroborado pela captação de imagens e prova testemunhal, será suficiente tanto para a responsabilidade administrativa, quanto criminal.
Desta forma, assim como para a infração de trânsito do artigo 165, o crime do artigo 306 também pode ser comprovado mediante a constatação de sinais notórios pelo agente de trânsito, que pode ser reforçada pela captação de imagem, vídeo e prova testemunhal.
Artigo 262 (apreensão do veículo)
Como ressaltado anteriormente, a alteração do artigo 262 não tem relação direta com o assunto em pauta, tendo sido apenas incluída no CTB, expressamente, a previsão de que a remoção do veículo e sua guarda no pátio constituem serviço público, que deve ser prestado diretamente pelo poder público ou por entidade contratada mediante licitação pública pelo critério de menor preço.
Além dos cinco artigos alterados do Código de Trânsito, foram também incluídos, pela Lei nº 12.760/12, duas definições, no Anexo I do CTB: “AR ALVEOLAR - ar expirado pela boca de um indivíduo, originário dos alvéolos pulmonares” e “ETILÔMETRO - aparelho destinado à medição do teor alcoólico no ar alveolar”.
São Paulo, 10 de janeiro de 2013.
JULYVER MODESTO DE ARAUJO, MESTRE em Direito do Estado pela PUC/SP e ESPECIALISTA em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de SP; CAPITÃO da Polícia Militar de SP, atual Chefe do Gabinete de Treinamento do Comando de Policiamento de Trânsito; Coordenador e Professor dos Cursos de Pós-graduação do CEAT (www.ceatt.com.br); Conselheiro do CETRAN/SP, desde 2003 e representante dos CETRANS da região sudeste no Fórum Consultivo por dois mandatos consecutivos; Diretor do Conselho Consultivo da ABRAM e Presidente da Associação Brasileira de Profissionais do Trânsito – ABPTRAN (www.abptran.org); Conselheiro fiscal da Companhia de Engenharia de Tráfego – CET/SP, representante eleito pelos funcionários, no biênio 2009/2011; Autor de livros e artigos sobre trânsito, além do blog www.transitoumaimagem100palavras.blogspot.com.