Art. 256 - Anistia de multas de trânsito, por Julyver Modesto de Araujo
A multa de trânsito é uma penalidade administrativa, de natureza pecuniária, decorrente de um ato classificado como infração de trânsito, prevista no artigo 256, inciso II, do Código de Trânsito Brasileiro.
Por se tratar de uma sanção a ato ilícito praticado, deve ser imposta pelos órgãos e entidades executivos de trânsito e rodoviários, no âmbito de sua competência e circunscrição, não havendo a liberdade de escolha sobre sua aplicação às infrações cometidas (o que, no Direito administrativo, é classificado como um ato administrativo vinculado, pois está restrito aos limites da lei e impede a decisão sobre sua conveniência e oportunidade).
Além do aspecto sancionatório da multa de trânsito, necessário esclarecer que o dinheiro devido pelo cidadão infrator ao órgão de trânsito passa a fazer parte da receita pública, como se depreende da Portaria do Departamento Nacional de Trânsito nº 407/11, que aprova a “Cartilha de Aplicação de Recursos Arrecadados com a Cobrança de Multas de Trânsito”, em cujo artigo 1º está disposto que “as multas aplicadas com a finalidade de punir a quem transgride a legislação de trânsito são receitas públicas orçamentárias, classificadas como outras receitas correntes e destinadas a atender, exclusivamente, as despesas públicas com sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação de trânsito”.
Vista sob estes dois ângulos: o de caráter da sanção e da composição da receita estatal, a primeira conclusão que se impõe é quanto à obrigatoriedade da imposição da multa de trânsito e sua consequente arrecadação pelo órgão competente (seja mediante o pagamento espontâneo pelo infrator, seja mediante a cobrança forçada pelo órgão público, judicial ou extra-judicial).
O Código de Trânsito Brasileiro, aliás, não prevê quaisquer situações em que a multa poderia deixar de ser aplicada às condutas infracionais no trânsito. Mesmo a imposição da penalidade, menos severa, de advertência por escrito, não deve ser entendida como uma forma de “perdão” da conduta praticada, mas como uma substituição de sanção, em casos bem específicos, nos termos do artigo 267 do CTB.
Não obstante, é comum nos depararmos com propostas de anistia de multas de trânsito, como se fosse possível cancelar penalidades impostas por infrações cometidas (a palavra “anistia” deriva do grego “amnestia” e significa “esquecimento”, sendo utilizada para designar o ato do Poder público que declara nulas punições aplicáveis a determinados atos, em período específico, por motivo de utilidade social).
Encontra-se em análise, por exemplo, processo junto ao Tribunal Superior Eleitoral, relativo à promessa ocorrida nas eleições de 2010, de candidato ao governo do Distrito Federal, no sentido de anistiar multas de trânsito de seus eleitores, o que se questiona não apenas pelo viés de “compra de votos”, mas também pela impossibilidade de que o Poder Executivo estadual crie um tipo de indulgência às infrações de trânsito efetivamente cometidas e, portanto, puníveis nos termos da lei.
Logicamente, quando existe equívoco na aplicação da devida sanção, há que se rever o ato praticado, com o consequente cancelamento das multas impostas, no exercício do dever de auto-tutela da Administração pública, como ocorreu no início de 2012, na cidade de São Paulo, quando foi necessário, ao órgão executivo de trânsito municipal, cancelar mais de treze mil autuações, por falhas no processamento das notificações, que continham fotos trocadas dos veículos surpreendidos pela fiscalização eletrônica.
Existe, inclusive, posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que legitima a ação revisora do Poder público, frente aos atos praticados de forma errônea:
“A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos” (Súmula 346).
“A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial” (Súmula 473).
Excluindo-se, portanto, as situações de nulidade de multas já impostas, que requer a correção dos atos praticados, a anistia, geral e irrestrita, de multas de trânsito deveria partir, exclusivamente, de lei decorrente de ente federativo com competência para tratar sobre a sua imposição, no caso a União, à qual compete privativamente legislar sobre trânsito e transportes, conforme artigo 22, inciso XI, da Constituição Federal, ou seja, eventual anistia de multas de trânsito deveria partir de lei federal que versasse sobre a matéria.
Neste sentido, são as palavras do Ministro Sepúlveda Pertence, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.137, contra Lei do Rio de Janeiro que dispunha sobre anistia de multas de trânsito: “anistia por lei estadual, alegação plausível de usurpação da competência legislativa privativa da União para legislar sobre trânsito, uma vez que, da competência privativa para definir as respectivas infrações, decorre o poder de anistiá-las ou perdoá-las, o qual não confunde com o da anulação administrativa de penalidades irregularmente impostas”.
Sob o argumento da competência privativa da União para dispor sobre o tema, o entendimento do Supremo Tribunal Federal tem se firmado pela inconstitucionalidade de leis estaduais que pretendam anistiar multas de trânsito: além do Rio de Janeiro (ADI 2.137-RJ), a questão já foi alvo de discussão judicial nos Estados do Mato Grosso do Sul (ADI 2.064-MS) e no Distrito Federal (ADI 1.592-DF).
Como se vê, não existindo lei federal que permita anistiar multas de trânsito, cabe aos órgãos e entidades executivos de trânsito e rodoviários a imposição e arrecadação das multas de trânsito, nos termos de sua competência e circunscrição, não sendo possível ao Poder Executivo criar mecanismos para alterar o processo administrativo constante do Código de Trânsito Brasileiro.
Tal afirmação vai mais além, pois exige, do Poder Público, a cobrança forçada das multas não pagas espontaneamente, a fim de que estas não sejam alcançadas pela prescrição quinquenal da pretensão punitiva administrativa (Lei nº 9.873/99). Por se constituir receita, é possível argumentar, inclusive, que tal omissão caracterizaria ato de improbidade administrativa, por causar prejuízo ao erário, na conformidade da Lei nº 8.429/92.
São Paulo, 10 de fevereiro de 2013.
JULYVER MODESTO DE ARAUJO, MESTRE em Direito do Estado pela PUC/SP e ESPECIALISTA em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de SP; CAPITÃO da Polícia Militar de SP, atual Chefe do Gabinete de Treinamento do Comando de Policiamento de Trânsito; Coordenador e Professor dos Cursos de Pós-graduação do CEAT (www.ceatt.com.br); Conselheiro do CETRAN/SP, desde 2003 e representante dos CETRANS da região sudeste no Fórum Consultivo por dois mandatos consecutivos; Diretor do Conselho Consultivo da ABRAM e Presidente da Associação Brasileira de Profissionais do Trânsito – ABPTRAN (www.abptran.org); Conselheiro fiscal da Companhia de Engenharia de Tráfego – CET/SP, representante eleito pelos funcionários, no biênio 2009/2011; Autor de livros e artigos sobre trânsito, além do blog www.transitoumaimagem100palavras.blogspot.com.