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Art. 76 - No trânsito, educação e fiscalização caminham juntas, por Julyver Modesto de Araujo

    Quem trabalha na fiscalização de trânsito está acostumado a ouvir comentários de que o Estado deveria priorizar o trabalho de educação, em vez de promover a aplicação de sanções administrativas, como se tais atividades fossem desconexas e divergentes entre si. Muitos condutores, inclusive, ao serem flagrados no cometimento de infração, costumam solicitar ao agente de trânsito que não seja lavrado o auto de infração, apelando para a simples advertência verbal (que não existe mais, na legislação de trânsito) e sugerindo que tal omissão representaria o uso do “bom senso” na aplicação da lei.  
    Diante desta realidade, e antes de demonstrar que, no trânsito, educação e fiscalização caminham juntas, quero desfazer este equívoco quanto à mera admoestação do agente de trânsito: a advertência verbal ERA prevista no Regulamento do Código Nacional de Trânsito (Decreto federal n. 62.127/68), em seu artigo 188, inciso I, que assim estabelecia: “A advertência será aplicada verbalmente, pelo agente da autoridade de trânsito, quando, em face das circunstâncias, entender involuntária e sem gravidade infração punível com multa classificada nos grupos 3 e 4” (equivalentes às atuais infrações de natureza média e leve).
    Com a entrada em vigor do atual Código de Trânsito Brasileiro (Lei n. 9.503/97), a única possibilidade de advertência passou a estar prevista em seu artigo 267, a ser aplicada por escrito, em substituição à penalidade de multa, pela autoridade de trânsito (dirigente do órgão executivo de trânsito ou rodoviário), às infrações de natureza leve ou média, sem reincidência nos últimos doze meses e, considerando o prontuário do infrator, entender-se a providência como mais educativa.
    Não há, portanto, a possibilidade legal de que o agente de trânsito apenas “chame a atenção” do infrator, deixando de lavrar a autuação, o que é expressamente previsto no artigo 280 do CTB, ao estabelecer que “Ocorrendo infração prevista na legislação de trânsito, LAVRAR-SE-Á auto de infração...”. Tal condição é reforçada no Manual Brasileiro de Fiscalização de Trânsito (Resoluções do Conselho Nacional de Trânsito n. 371/10 e 561/15), o qual prescreve que “a lavratura do AIT é um ato vinculado na forma da Lei, não havendo discricionariedade com relação a sua lavratura, conforme dispõe o artigo 280 do CTB”.
    Assim, outra não deve ser a atitude do agente de trânsito, ao se deparar com uma infração já cometida: impõe-se a lavratura da correspondente autuação, para que a autoridade de trânsito, após o julgamento da sua regularidade, aplique a penalidade cabível, ou, se constatada alguma inconsistência, determine o seu arquivamento (artigo 281 do CTB).
    Clamar pelo chamado “bom senso”, para que não seja registrado um auto de infração, significa ignorar os preceitos legais aplicáveis ao exercício da fiscalização de trânsito, o que pode ensejar, inclusive, responsabilização penal, civil e administrativa ao agente de trânsito que deixa de praticar o ato que lhe compete.
    Cabe ressaltar que, embora seja comum o “jeitinho brasileiro”, não há legalidade na displicência do agente; ainda que não exista qualquer solicitação, exigência ou promessa de vantagem indevida, para o comportamento conivente do servidor público, o fato é que sua omissão pode vir a caracterizar o crime de prevaricação ou de corrupção passiva ‘privilegiada’, a depender das circunstâncias pelas quais deixou de agir (tais crimes são previstos, respectivamente, nos artigos 319 e 317, § 2º, do Código Penal, com os seguintes termos: “Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal” e “Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem”).
    Não há que se falar, entretanto, que a fiscalização deve ser meramente repressiva, a fim de se esperar que as infrações de trânsito aconteçam, para que, somente após, sejam adotadas providências reparadoras (com a correspondente sanção). O próprio conceito de fiscalização, conforme Anexo I do CTB, traduz-se no “ato de controlar o cumprimento das normas de trânsito”, o que impõe ao agente de trânsito que vigie as condutas nas vias públicas, antes mesmo de se tornarem infrações, ou seja, se o fiscal percebe que um condutor vai avançar o sinal vermelho do semáforo, está prestes a estacionar em local proibido ou se prepara para sair com a motocicleta sem o capacete de segurança, é sua OBRIGAÇÃO, no controle do cumprimento da legislação, cobrar a postura adequada do usuário da via pública, de modo a impedir o comportamento infracional e garantir-lhe a sua própria segurança. 
    Neste contexto, a lavratura de um auto de infração (para a consequente aplicação da multa de trânsito) constitui a consequência devida para aquilo que não se pôde evitar. E com qual objetivo? Se compararmos a imposição de uma sanção administrativa (como a multa de trânsito) com a sanção criminal (por exemplo, a pena privativa de liberdade), verificaremos uma distinção bem interessante: enquanto a punição decorrente da prática de um crime tem uma finalidade retribucionista, isto é, de retribuir à pessoa o mal que ela causou a sociedade, aplica-se outro critério nas infrações administrativas, pois seu escopo é o de evitar a continuidade da conduta: em vez de retribuir, chamamos sua finalidade de utilitarista, cuja serventia consiste na sedimentação do comportamento esperado para a sociedade.
    Em outras palavras, dizemos que, se a punição por crimes visa o passado (castigando o autor), a punição por infrações visa o futuro, para que aquele infrator não volte a adotar o mesmo comportamento mais adiante (bem como as outras pessoas que, embora não multadas, tenham notícia das ações de fiscalização e evitem incorrer no mesmo erro). 
    É justamente por este motivo, que Educação e Fiscalização caminham juntas, pois possuem o mesmo objetivo: a mudança de comportamento. Não se tratam de ações dissonantes, mas que se agregam e se complementam, tendo em vista que a imposição de multa aos infratores visa corrigir aquilo que a ação educativa não foi capaz de fazê-lo. Aliás, a própria etimologia da palavra “educação” nos demonstra o quanto seu significado é próximo do intento punitivo, no campo administrativo, de que tratei anteriormente: educar vem do latim “ex-ducere”, que significa “conduzir para fora”, no sentido de fazer com o que o indivíduo traga, de dentro de si, uma mudança perante seus pares na sociedade.
    Uma demonstração interessante de como tais ações se convergem é a análise da utilização do cinto de segurança: embora muitas pessoas já tenham se acostumado a usá-lo no banco da frente, o mesmo cuidado não vislumbramos no banco traseiro, o que deixa claro que não é o conhecimento quanto à segurança viária que tem moldado o comportamento dos ocupantes de veículos, mas a percepção (até mesmo inconsciente) de que a possibilidade de serem multados, no banco da frente, é muito maior do que se estiverem no banco de trás; destarte, podemos dizer que A MULTA TAMBÉM EDUCA (ainda que a alteração do comportamento se dê não pela consciência quanto à necessidade de uma conduta segura, mas como um desdobramento do desejo de não ser multado).
    Há que se apontar, inclusive, a previsão constitucional de que tais ações sejam adotadas em conjunto pelos órgãos de trânsito, nas três áreas de atuação prioritárias para a promoção da segurança viária: educação, engenharia e fiscalização (artigo 144, § 10, da CF/88, incluído pela Emenda Constitucional n. 82/14), muito embora, ressalte-se, o terceiro elemento deste conceito internacional, chamado “trinômio do trânsito”, em sua origem, não seja propriamente a fiscalização, mas o “esforço legal” (que compreende desde a elaboração da lei, a atuação dos órgãos fiscalizadores e até a prestação jurisdicional decorrente do seu descumprimento). 
    Ademais, a educação para o trânsito constitui dever prioritário para os componentes do Sistema Nacional de Trânsito, nos termos do artigo 74 do CTB, não sendo correto, desta forma, que os órgãos e entidades executivos de trânsito e rodoviários, ao exercerem a competência de fiscalização, deixem de lado o trabalho educativo-preventivo, cujas campanhas devem ser realizadas conforme orientações baixadas pelo Conselho Nacional de Trânsito, por meio da Resolução n. 314/09, segundo a qual “entende-se por campanha educativa toda a ação que tem por objetivo informar, mobilizar, prevenir ou alertar a população ou segmento da população para adotar comportamentos que lhe tragam segurança e qualidade de vida no trânsito”. 
    Dentre as várias diretrizes estabelecidas para citadas campanhas educativas, ressalto a recomendação (prevista no item 2.5. da Resolução) para que haja um extremo cuidado com abordagens negativas ou que apresentem violência, para evitar a anodinia (“ausência de dor; espécie de anestesia da capacidade de impressionar com algo violento e, por conseguinte, banalizá-lo”).
    A necessidade de um trabalho educativo nos traz outra reflexão: A educação de trânsito para adultos realmente funciona? Ou será que somente terá reflexos um projeto que tenha como destinatário final o público infantil?
    É fato que, se o Código de Trânsito fosse realmente cumprido, a educação para o trânsito já seria uma realidade escolar há mais de 18 anos (período de vigência do atual CTB), posto que, de acordo com o seu artigo 76, “A educação para o trânsito será promovida na pré-escola e nas escolas de 1º, 2º e 3º graus, por meio de planejamento e ações coordenadas entre os órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito e de Educação, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, nas respectivas áreas de atuação” (destaca-se que a denominação “1º, 2º e 3º graus” trata-se de nomenclatura anterior à atual Lei n. 9.394/96, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, publicada pouco antes do CTB, e que hoje divide a educação básica em “pré-escola, ensino fundamental e ensino médio”).
    Apesar de citada previsão legal, somada ao artigo 315 do CTB, que concedia prazo de 240 dias para que fosse estabelecido o currículo com conteúdo programático relativo à segurança e à educação de trânsito, infelizmente, não é o que vemos no ambiente escolar. Além de não ter sido cumprido este prazo, o máximo que ocorreu, até o presente momento, foi a determinação do Conselho Nacional de Educação, nas diretrizes curriculares nacionais para educação básica, para que a educação para o trânsito seja tratada de maneira transversal e integrada, permeando todo o currículo, no âmbito dos demais componentes curriculares (o que existe como exceção, e não como regra nas Escolas).
    Diante deste quadro, refaz-se a pergunta anterior: não tendo sido educado para o trânsito, desde a infância, nos bancos escolares, será que o adulto pode ter o seu comportamento modificado, por meio de campanhas que “informem, mobilizem, previnam e alertem” quanto à responsabilidade de cada um, na garantia da segurança viária? 
    É inegável que só o CONHECIMENTO sobre as regras de trânsito não será suficiente para este intento, pois, se assim o fosse, todo motorista já sairia do Centro de Formação de Condutores devidamente preparado para fazer o seu melhor e evitar as tragédias do trânsito. O que importará, por óbvio, são as ATITUDES desenvolvidas constantemente, que tornem um HÁBITO a condução cautelosa do veículo, o que somente ocorrerá com o tempo e levando-se em consideração outros aspectos da vida de cada indivíduo, que não é apenas um “ser atrás do volante, isolado do restante do mundo”. Afinal, como cobrar um comportamento seguro no trânsito, baseado em gestos de respeito, gentileza, educação e cuidado, se este tipo de postura não fizer parte do cotidiano do motorista, em suas relações interpessoais, de uma maneira geral?
    E como fazer isso?
    Seja sob o aspecto psicológico (com a compreensão dos efeitos de reforços positivos e negativos, partindo dos conceitos adotados pelo behaviorismo), seja sob a perspectiva neurológica (por meio da qual é possível constatar que ações frequentes tendem a criar caminhos neurais que automatizam a conduta humana) ou mesmo pelo viés econômico (que demonstra o quanto as escolhas são motivadas por incentivos), a questão é que o conjunto de comportamentos esperados de um indivíduo é moldado pelas consequências a que ele está sujeito, como se estivéssemos, o tempo todo, nos perguntando: “o que eu ganho com isso?” ou “o que eu perco com isso?”.
    Cabe aos órgãos de trânsito, sob esta óptica, demonstrar justamente quais serão os ganhos (ou as perdas) secundários aos usuários das vias públicas, quando adotarem posturas seguras ou inseguras. A multa, com certeza, é um dos coadjuvantes no processo de mudança comportamental. 
    O trabalho de educação, diante de todo o exposto, é primordial e não pode ser menosprezado, desde que seja levado a efeito em conjunto com a atividade de fiscalização. Afinal de contas, como diz o ditado, “ou se aprende pelo amor, ou pela dor!” 
 
 
São Paulo, 10 de abril de 2016.
 
 
JULYVER MODESTO DE ARAUJO, Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP; Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança (SP); Especialista em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de SP; Capitão da Polícia Militar de SP, com atuação no policiamento de trânsito, desde 1996, e atual Comandante da Companhia Tática do Comando de Policiamento de Trânsito; Coordenador e Professor dos Cursos de Pós-graduação do Centro de Estudos Avançados e Treinamento / Trânsito - CEAT; Conselheiro do CETRAN/SP, desde 2003; Integrante do Fórum Consultivo do Sistema Nacional de Trânsito, sendo representante dos CETRANS da região sudeste por dois mandatos consecutivos e, atualmente, representante das Polícias Militares da região sudeste; Conselheiro fiscal da CET/SP, representante eleito pelos funcionários, no biênio 2009/2011; Presidente da Associação Brasileira de Profissionais do Trânsito – ABPTRAN; Autor de livros e artigos sobre trânsito.
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