Art. 164 - Multas de trânsito para ciclistas e pedestres, por Julyver Modesto de Araujo
Em 27OUT17, o Conselho Nacional de Trânsito fez publicar, no Diário Oficial da União, a Resolução n. 706/17, para “dispor sobre a padronização dos procedimentos administrativos na lavratura de auto de infração, na expedição de notificação de autuação e de notificação de penalidades por infrações de responsabilidade de pedestres e de ciclistas, expressamente mencionadas no Código de Trânsito Brasileiro – CTB”, em vigor após decorridos 180 dias de sua publicação (ou seja, a partir de 25ABR18).
Na verdade, a multa de trânsito para ciclistas e pedestres não foi uma invenção do CONTRAN, o qual tão somente regulamentou (ainda que com quase 20 anos de atraso) a aplicação de sanções administrativas por infrações já previstas no CTB, desde o início da sua vigência.
A Resolução n. 706/17 menciona, destarte, expressamente as infrações dos artigos 254, em seus seis incisos (pedestres) e 255 (ciclistas), devendo ser considerado, todavia, que os condutores de bicicletas também podem ser punidos pelas infrações específicas dos artigos 244, § 1º, e 247; além disso, nada impediria que lhes fossem aplicadas as penalidades decorrentes da quase totalidade das infrações tipificadas no CTB, pois as condutas descritas na maioria dos artigos não se restringem a veículos automotores, como avanço de sinal vermelho do semáforo, conversão proibida, estacionamento irregular, trânsito na contramão, direção sob influência de álcool etc (somente as infrações dos artigos 164 e 168 trazem, textualmente, a expressão “automotor” ao se referirem ao veículo infrator).
A dificuldade (pelo menos até o advento da norma sob comento) para fiscalização dos ciclistas e pedestres (e, consequentemente, imposição de penalidades) decorre do fato de que todo o sistema de aplicação e processamento das multas de trânsito pressupõe a existência de um registro de veículo, para que nele sejam lançadas as correspondentes punições por atos cometidos pelo proprietário e/ou condutor.
No caso das bicicletas, a questão já poderia ser facilmente resolvida, a depender do interesse de cada município, posto que o CTB admite a possibilidade de se exigir o registro e licenciamento de veículos de propulsão humana, conforme lei municipal do domicílio ou residência de seu proprietário (artigo 129), sendo possível, inclusive, a criação de Autorização específica para sua condução, sob responsabilidade também do ente local (§ 1º do artigo 141); por conseguinte, havendo LEI MUNICIPAL determinando o registro e licenciamento de bicicletas (com a exigência de renovação anual), qualquer infração de trânsito já poderia ser punida, mesmo antes da edição da Resolução n. 706/17.
A novidade maior, portanto, foi a previsão de inserção, no sistema de processamento de multas, de sanções administrativas aplicadas aos pedestres, sem a utilização de qualquer veículo, a exemplo do que já ocorreu para infrações cometidas por pessoas físicas e jurídicas (artigos 93, 94, 95 caput e §§ 1º e 2º, 174, parágrafo único, primeira parte, 221, parágrafo único, 243, 245, 246, 330 caput e § 5º), conforme regulamentação dada pela Resolução n. 248/07, posteriormente revogada e substituída pela Resolução n. 390/11 (registre-se, porém, que, apesar de existir norma a respeito há 10 anos, a maioria dos órgãos de trânsito não aplica citadas multas de trânsito, limitando-se às sanções a veículos automotores, o que pode vir a acontecer também no vertente caso, isto é, pode ser que a Resolução n. 706/17 fique apenas “no papel”, não obstante a determinação de adequação dos procedimentos, pelos órgãos de trânsito, até a sua entrada em vigor – art. 7º).
Dentre os procedimentos estabelecidos para a autuação dos ciclistas e pedestres, estabelece o CONTRAN a obrigatoriedade de abordagem (art. 2º, § 3º), até por princípio lógico, uma vez que, excetuada a possibilidade da identificação externa da bicicleta, decorrente de registro municipal, conforme citado, somente a abordagem é que permitirá qualificar o infrator e inserir a multa no sistema. Tal exigência, embora inafastável (nem vislumbro outra maneira de se lavrar o auto de infração), já demonstra a dificuldade para exercer este tipo de fiscalização de trânsito, especialmente quando forem vários os infratores (por exemplo, muitos pedestres atravessando a via fora da faixa), pois a aproximação do agente de trânsito, por certo, ocasionará a evasão daqueles que não quiserem ser penalizados.
O modelo do auto de infração, a ser implementado pelos órgãos e entidades executivos de trânsito e rodoviários, deve conter os blocos e campos mínimos constantes do Anexo à Resolução, dos quais se destaca a necessidade de anotação do nome completo e documento de identificação “previsto na legislação vigente” e, QUANDO POSSÍVEL, endereço e inscrição no CPF; em relação à bicicleta, deverão ser lançadas as informações disponíveis (não havendo o registro municipal, os dados que forem possíveis obter, como marca, modelo, cor e número de quadro).
A necessidade de anotação do documento de identificação do infrator ensejará problemas quando o autuado não se identificar ao agente de trânsito, seja pela recusa em apresentar seu documento, seja por não portá-lo.
Em ambos os casos, entendo como necessária a adoção de providências de polícia judiciária: se houver a recusa, estará configurada a contravenção penal prevista no artigo 68 da Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei n. 3.688/41) - “recusar à autoridade, quando por esta justificadamente solicitados ou exigidos, dados ou indicações concernentes à própria identidade, estado, profissão, domicílio e residência” - e quando não portar qualquer documento de identificação, restará a condução ao Distrito policial, para a realização de exame datiloscópico (por meio das digitais), tendo em vista o disposto no inciso LVIII do artigo 5º da Constituição Federal - “o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei”, até mesmo porque pode se tratar de indivíduo com pendências na Justiça (e, sendo assim, obviamente, preferirá não ter documento nenhum consigo).
No âmbito de atuação das Polícias Militares, enquanto responsáveis pela polícia ostensiva e preservação da ordem pública, a condução coercitiva de pessoas não identificadas na via pública para as providências acima citadas, é algo bastante comum e que faz parte das ações rotineiras de polícia, mas acredito que serão posturas questionadas (e, até, de difícil imposição prática), na atuação dos agentes civis de trânsito (lembrando que as infrações dos artigos 254 e 255 são de competência municipal, nos termos da Resolução n. 66/98 e do Manual Brasileiro de Fiscalização de Trânsito).
O processo administrativo para imposição da penalidade de trânsito e os respectivos recursos é o mesmo que o previsto para a aplicação da multa de trânsito para veículos, devendo ser obedecidos, no que couber, o disposto nas Resoluções n. 299/08, 390/11 e 619/16 (art. 4º); para tanto, o Departamento Nacional de Trânsito promoverá alterações no Registro Nacional de Infrações de Trânsito – RENAINF, para fins de registro das notificações e acompanhamento da arrecadação (art. 6º).
Não foi estabelecido, entretanto, qual será o desdobramento diante do não pagamento das multas impostas, condição que não terá a mesma consequência relativa ao proprietário de veículo com débitos, o qual, pela falta de licenciamento, poderá acarretar a remoção ao pátio, se for abordado nesta condição (infração do art. 230, V); no caso dos pedestres, em especial, a única decorrência que consigo antever é a eventual cobrança extrajudicial e/ou judicial, incluindo a possibilidade de inscrição em dívida ativa e, até mesmo, negativação do nome do devedor em cadastro de inadimplência, com impedimentos de transações financeiras junto ao poder público e o comércio em geral.
Conquanto não fosse necessária a previsão expressa, preocupou-se a Resolução de mencionar a questão da tríplice responsabilidade, ao estabelecer que, além da esfera administrativa (aplicação da multa de trânsito), o comportamento infracional também estará sujeito, de forma independente, à responsabilidade civil e penal que der causa (art. 5º).
Neste aspecto, cabe destacar que os menores de idade também poderão ser autuados, haja vista que a responsabilidade ADMINISTRATIVA e CIVIL são diferentes da responsabilidade PENAL: embora penalmente inimputáveis (art. 228 da CF e art. 27 do Código Penal) [1], os menores de 18 anos estão passíveis, normalmente, quando autores de infrações administrativas, às suas respectivas sanções, até porque, por importar em um valor pecuniário a ser pago aos cofres públicos, a multa de trânsito ficará, subsidiariamente, na responsabilidade de pagamento pelos seus responsáveis, da mesma forma que se prevê para a obrigação de indenizar decorrente da responsabilidade civil (artigos 932 e 928 do Código Civil) [2].
Por fim, importante ressaltar que as infrações dos artigos 254 e 255 poderão ter a penalidade de multa convertida em participação do infrator em cursos de segurança viária, a critério da autoridade de trânsito, quando não houver reincidência específica nos últimos doze meses, nos mesmos moldes da advertência por escrito (art. 267, § 2º, do CTB).
São Paulo, 20 de novembro de 2017.
JULYVER MODESTO DE ARAUJO, Capitão da Polícia Militar de São Paulo, com atuação no policiamento de trânsito urbano desde 1996; Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da PMESP; Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP; Especialista em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de SP; Coordenador de Cursos, Professor, Palestrante e Autor de livros e artigos sobre trânsito.
[1] CF - Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.
CP - Art. 27. Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial.
[2] CC - Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:
I - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia; ...
Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes.