Art. 306 - Aumento de pena para quem lesiona ou mata, dirigindo embriagado, por Julyver Modesto de Araujo
Foi publicada, no Diário Oficial da União de 20DEZ17, a Lei n. 13.546/17, que altera os artigos 291, 302, 303 e 308 do Código de Trânsito Brasileiro, em vigor após decorridos cento e vinte dias de sua publicação (logo, em 19ABR18).
Infelizmente, uma informação EQUIVOCADA passou a ser transmitida nas redes sociais e até mesmo pela própria imprensa, no sentido de que ocorreu aumento de pena para quem dirige sob influência de álcool.
O fato é que NÃO houve aumento de pena para quem dirige sob influência de álcool, conduta que continua sendo infração de trânsito (artigo 165 do CTB) e, a depender das circunstâncias, também crime previsto no artigo 306, desde que haja alteração da capacidade psicomotora (constatada pela concentração específica de álcool ou pela existência de sinais), sujeito à pena de detenção de seis meses a três anos (NÃO HOUVE MUDANÇA QUANTO A ISSO).
O que mudou foi o tratamento dado a quem bebe, dirige e MATA no trânsito (ou causa lesões graves ou gravíssimas), conforme o § 3º incluído ao artigo 302 e o § 2º incluído ao artigo 303, que veremos a seguir.
Artigo 291. ...
...
§ 3º (VETADO).
§ 4º O juiz fixará a pena-base segundo as diretrizes previstas no art. 59 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), dando especial atenção à culpabilidade do agente e às circunstâncias e consequências do crime.
Comentário: O § 3º, que foi vetado, trazia o seguinte texto:
“Nos casos previstos no § 3º do art. 302, no § 2º do art. 303 e nos §§ 1º e 2º do art. 308 deste Código, aplica-se a substituição prevista no inciso I do caput do art. 44 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), quando aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos, atendidas as demais condições previstas nos incisos II e III do caput do referido artigo”.
O veto presidencial foi decorrente de manifestação do Ministério das Cidades, com as seguintes razões: “O dispositivo apresenta incongruência jurídica, sendo parcialmente inaplicável, uma vez que, dos três casos elencados, dois deles preveem penas mínimas de reclusão de 5 anos, não se enquadrando assim no mecanismo de substituição regulado pelo Código Penal. Assim, visando-se evitar insegurança jurídica, impõe-se o veto ao dispositivo”.
A inclusão deste § 3º era tida como uma forma de fazer com que os condutores que, sob influência de álcool, causassem mortes no trânsito fossem punidos, efetivamente, com a privação de liberdade, tendo em vista que, pela inclusão do § 3º ao artigo 302, adiante comentado, este tipo de crime passa a ser uma forma qualificada do homicídio culposo, ao qual se aplica a substituição de pena privativa por restritiva de direitos, independente da pena aplicada, nos termos do artigo 44 do Código Penal (para os dolosos, somente se substitui se a pena for de até quatro anos, limitador que o legislador queria utilizar também para os crimes de trânsito, ainda que, no 302 e 303, na modalidade culposa). Infelizmente, a redação do texto foi falha, pois, em vez de dizer que “não se aplica a substituição de pena”, começou dizendo exatamente o que já ocorreria, na aplicação da lei penal.
Se fosse aprovado, seria, praticamente, uma inovação do CTB no Código Penal, modificando a aplicabilidade do disposto no artigo 44, quanto à substituição de pena, o que, por certo, traria discussões doutrinárias e impasses no Poder Judiciário; talvez por este motivo, é que se entendeu que ocorreria um quadro de insegurança jurídica, ocasionando o seu veto.
O § 4º não trouxe absolutamente qualquer novidade efetiva, para o tratamento processual dos crimes de trânsito, tendo em vista que a fixação de pena, para qualquer crime cometido (e não só os de trânsito) deve levar em consideração, justamente, o artigo 59 do Código Penal, citado no texto; ou seja, o dispositivo apenas está dizendo que deve ser feito o que já seria feito mesmo (aliás, o próprio caput do artigo 291 já é claro ao estabelecer que, aos crimes cometidos na direção de veículos automotores, aplicam-se as normas gerais do Código Penal e de Processo Penal).
Artigo 302. ...
...
§ 3º Se o agente conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Penas - reclusão, de cinco a oito anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Comentário: Esta é, sem dúvida, a principal alteração trazida pela Lei n. 13.546/17, já que o objetivo do PL que lhe deu origem (n. 5.568/13) era exatamente aumentar as penas do condutor que, sob influência de álcool, causa mortes no trânsito.
A combinação das condutas de “dirigir sob influência de álcool” e “matar alguém, na direção de veículo”, que constituem crimes autônomos (respectivamente, artigos 306 e 302 do CTB) tem sido tratada de várias formas, ao longo do tempo, merecendo destaque as seguintes alterações no CTB:
- de 2006 a 2008, o fato de o condutor estar sob influência de álcool constituía causa de aumento de pena (de um terço à metade) nos crimes de homicídio culposo (artigo 302, § 1º, V) e lesão corporal culposa (artigo 303, parágrafo único) – tal inciso foi incluído pela Lei n. 11.275/06 e revogado pela Lei n. 11.705/08; e
- de 2014 a 2016, a ocorrência de morte, causada por condutor com alteração da capacidade psicomotora passou a ser tratada como uma forma qualificada do homicídio culposo (sem a mesma menção no crime de lesão corporal culposa), por conta da inclusão do § 2º ao artigo 302, pela Lei n. 12.971/14, o qual, entretanto, foi revogado pela Lei n. 13.281/16 (estranhamente, porém, esta forma qualificada apenas ‘mudava’ a pena privativa de liberdade, em vez de DETENÇÃO de 2 a 4 anos, para RECLUSÃO de 2 a 4 anos, mas sem aumento na dosimetria).
Além disso, existem posicionamentos divergentes na doutrina e jurisprudência, quanto a dois aspectos fundamentais, para se determinar qual será a punição do motorista que bebe, dirige e mata:
1º) O crime (homicídio causado por motorista embriagado) é culposo ou doloso? Há um posicionamento (não dominante) de que o motorista bêbado que causa a morte de outra pessoa deva ser processado pelo crime de homicídio DOLOSO, previsto não no CTB, mas no Código Penal (artigo 121), com pena de 6 a 20 anos (muito maior que a pena de 2 a 4 anos, do crime de trânsito), na modalidade de dolo EVENTUAL (em que o autor do crime assume o risco de produzir o resultado). Tal conclusão depende, unicamente, da análise das circunstâncias de cada caso e, portanto, não havia uma forma de dizer, até então, que TODO crime de homicídio (ou lesão corporal) causado por motorista embriagado é CULPOSO ou DOLOSO [1]; e
2º) Por serem crimes autônomos, quando praticados em conjunto, um absorve o outro (princípio da consunção) ou devem ser somados (concurso material, nos termos do artigo 69 do CP)? É possível encontrar, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, os dois posicionamentos. Se defendermos a consunção, o crime de alcoolemia ao volante deixa de ser apenado, restando apenas o homicídio; se, por outro lado, entendermos que há concurso material, a pena poderia chegar a até 7 anos (4 anos do homicídio culposo, se aplicada a pena máxima + 3 anos da alcoolemia) ou a até 27 anos, se juntarmos com a explicação anterior, quanto ao dolo eventual (20 do homicídio doloso + 3 da alcoolemia).
Com base nas explicações acima, podemos dizer que SEM QUALQUER ALTERAÇÃO no CTB, seria possível um maior rigor da punição aos ébrios do volante, bastando que Ministério Público e, principalmente, Poder Judiciário, dessem a cada caso, a interpretação menos benevolente, contemplando a tese do dolo eventual e do concurso material de crimes.
A inclusão do § 3º ao artigo 302, apesar de trazer uma pena maior do que a prevista para o homicídio culposo, sem a qualificadora da alcoolemia, acaba por repercutir em três questões cruciais:
1ª) não será mais possível conceber esta situação como crime doloso, pois a própria Lei já determina que é uma forma qualificada do culposo (o que ocorreu em 2006 e em 2014, que, exatamente por este motivo, foi revogado em 2008 e, novamente, em 2016);
2ª) não será mais possível adotar a tese de concurso material, pois o crime do artigo 306 passou a ser subsidiário (assim como ocorre com a omissão de socorro do artigo 304), isto é, somente se pune o condutor pela alcoolemia, se não houver o evento morte ou lesão corporal;
3ª) por ser crime culposo, independente da pena, NÃO haverá o encarceramento do condenado, pois a pena privativa de liberdade será substituída pela restritiva de direitos, conforme artigo 44 do Código Penal (era isso que o § 3º do artigo 291 pretendia evitar, mas foi vetado); neste sentido, vale destacar que o artigo 312-A do CTB, incluído pela Lei n. 13.281/16, prescreve que a pena alternativa deve ser imposta como prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas, de atendimento às vítimas de trânsito.
Em suma, a alteração legislativa não merece ser tão festejada assim, pois, sem ela, seria possível alcançar resultados mais rigorosos em termos de punição. Vale lembrar que os (poucos) casos de condenação (ou processos em andamento) por dolo eventual e/ou concurso material poderão, inclusive, serem revistos, em consideração ao princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica (artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal).
Por fim, destaco uma impropriedade redacional na pena acessória do § 3º do artigo 302: “suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”, pois foram colocadas duas palavras a mais aí (‘do direito’), já que a nomenclatura correta, prevista no artigo 292 e em todos os crimes em que ela aparece, é “suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”.
Artigo 303. ...
...
§ 2º A pena privativa de liberdade é de reclusão de dois a cinco anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo, se o agente conduz o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, e se do crime resultar lesão corporal de natureza grave ou gravíssima.
Comentário: Em complemento às considerações apontadas acima, principalmente quanto ao dolo eventual e concurso material de crimes, importante consignar que, no caso da lesão corporal, num primeiro momento, por incrível que pareça, não há qualquer recrudescimento para a conduta intencional (dolosa), pois o artigo 129 do CP tem pena MENOR do que o artigo 303 do CTB (na lesão dolosa, detenção de três meses a um ano e, na lesão culposa, seis meses a dois anos).
Entretanto, a lesão culposa não possui qualquer gradação (grave ou gravíssima), pois esta classificação só existe no Direito penal, exatamente nos parágrafos do artigo 129 do CP, relativos à lesão DOLOSA; isto significa que, para alguém responder por lesão grave ou gravíssima, incurso no artigo 303 do CTB, deverá ser ‘emprestada’ a conceituação penal, relacionada ao crime doloso.
Neste aspecto, lesão grave será aquela que resulta: I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias; II - perigo de vida; III - debilidade permanente de membro, sentido ou função; ou IV - aceleração de parto (§ 1º do artigo 129 do CP); enquanto que a lesão gravíssima é a que resulta: I - Incapacidade permanente para o trabalho; II - enfermidade incurável; III - perda ou inutilização do membro, sentido ou função; IV - deformidade permanente; ou V - aborto (§ 2º do artigo 129 do CP).
O curioso é que, sendo culposa e com tais consequências, o novo § 2º do artigo 303 estabelece pena de reclusão de 2 a 5 anos, sendo que, SE FOSSE considerada como dolosa, no caso da lesão grave, a pena seria de reclusão de 1 a 5 anos e, no caso da gravíssima, de 2 a 8 anos.
Isto significa que, por não mais ser possível a tese do dolo eventual, o motorista embriagado que causa lesões gravíssimas em alguém passará a ter uma pena MENOR do que a seria possível, se fosse aplicado o artigo 129, § 2º, do Código Penal.
Artigo 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada.
Comentário: Somente foi incluído, no tipo penal, a participação do condutor em “exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor” (infração de trânsito do artigo 175 do CTB), sem qualquer mudança quanto à pena a ser aplicada.
São Paulo, 15 de janeiro de 2018.
JULYVER MODESTO DE ARAUJO, Capitão da Polícia Militar de São Paulo, com atuação no policiamento de trânsito urbano desde 1996; Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da PMESP; Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP; Especialista em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de SP; Coordenador de Cursos, Professor, Palestrante e Autor de livros e artigos sobre trânsito.
[1] Para mais esclarecimentos sobre crime doloso ou culposo, leia este meu texto opinativo: “Embriaguez ao volante (crime doloso?), disponível em http://www.ctbdigital.com.br/artigo-comentarista/340