Art. 21 - Parcelamento de multas de trânsito, por Julyver Modesto de Araujo
O Código de Trânsito Brasileiro NÃO estabelece a possibilidade de parcelamento de multas de trânsito, questão que deve, aliás, ser motivo de reflexão pelos que atuam na área, tendo em vista que a multa constitui uma penalidade, uma punição por uma desobediência à legislação de trânsito e, desta forma, convém avaliar se é adequado facilitar o cumprimento da sanção administrativa; guardadas as devidas proporções, seria como possibilitar a alguém condenado a pena privativa de liberdade, por um crime cometido, a segmentação do período que deveria permanecer encarcerado.
O debate acerca da questão deve levar em consideração a necessidade de mudança do comportamento a partir da pena aplicada pela Administração, tendo-se como premissa a conclusão alcançada pelo filósofo inglês Thomas Hobbes, na obra Leviatã, segundo o qual é necessária a presença de um Estado forte para reprimir a inerente maldade humana.
Desta forma, cabe ao Estado, mediante o poder que lhe é conferido para impor penalidades àqueles que descumprirem o ordenamento jurídico, estabelecer as penas de modo a não só retribuir ao infrator, na medida fixada pela própria lei, o mal causado pela sua conduta, mas inibir que aquele comportamento delituoso volte a ser adotado (seja pelo próprio apenado, seja pelas outras pessoas, que tendem a controlar seus atos, frente à potencial punição).
Justamente por esta condição é que tem entendido a doutrina, desde as lições de Chiovenda (jurista italiano expoente na área do Direito processual), que a pena possui, além da sua essência punitiva, duas finalidades, de igual importância: de um lado, a pena tem o caráter retributivo, com o objetivo de demonstrar à sociedade que, como diz o vulgo popular, "o crime não compensa" e, de outro, ela também é utilitarista, para que sejam desestimuladas as condutas ilícitas, com o exemplo da punição (o que é um marco principal das sanções administrativas).
Uma das mais significativas mudanças da legislação de trânsito, com o advento do atual Código de Trânsito Brasileiro, foi exatamente o aumento dos valores das multas, não para incrementar a arrecadação estatal (pelo menos não era essa a intenção do legislador, o que fica claro com a vinculação da aplicação da receita arrecadada, nos termos do artigo 320 do CTB), mas para potencializar o caráter utilitarista da pena pecuniária, desestimulando novas infrações; tanto é que, das seis penalidades (hoje) estabelecidas no artigo 256 do Código, apenas a penalidade de multa é prevista para TODAS as infrações de trânsito e, portanto, representa importante ferramenta para a mudança de comportamento dos usuários do trânsito.
O Código de Trânsito Brasileiro, em nenhum momento, estabelece situação de enfraquecimento da penalidade de multa, pelo contrário, prevê seu pagamento até mesmo como condição obrigatória para a continuidade do exercício ao direito de propriedade do veículo, já que, na conformidade do § 2º do artigo 131, o veículo somente poderá ser licenciado com a quitação das multas de trânsito a ele atribuídas e, não estando licenciado, além de nova multa, estará sujeito à remoção ao pátio, pelo cometimento da infração do artigo 230, V, sendo sua restituição vinculada ao pagamento das multas de trânsito existentes (artigo 271) e, finalmente, se o proprietário assim não o fizer, após sessenta dias, prevê o artigo 328 a realização de leilão, deduzindo-se, do valor arrecadado, os débitos existentes, antes de destinar eventual valor remanescente ao ex-proprietário.
A única previsão legal de diminuição do valor da multa é aquela determinada pelo artigo 284, que autoriza o pagamento por 80% do seu valor se houver a quitação até o vencimento (e, desde novembro de 2016, por 60%, se utilizado o sistema de notificação eletrônica e houver renúncia recursal), o que, longe de representar enfraquecimento do Estado, demonstra o beneplácito com aqueles infratores que se sujeitam à aplicação da penalidade, incentivando-os ao seu cumprimento no prazo determinado pelo órgão de trânsito.
Vejam, portanto, que a sistemática adotada pela legislação de trânsito procura fortalecer o Estado na aplicação da pena, obrigando-se, de diversas formas, que o infrator sinta o peso da punição, o que, em contrapartida, não se vislumbra na medida em que se procura criar facilidades para o cumprimento da penalidade.
A preocupação com a inadimplência no pagamento das multas de trânsito deve constituir motivo não para criar facilidades, mas para a criação de mecanismos que potencializem a atuação do Estado na fiscalização de veículos não licenciados, na realização de leilões dos veículos removidos ao pátio e na cobrança extrajudicial ou judicial das multas inscritas em dívida ativa.
Feitas tais considerações, questionamos não só a coerência, mas a validade de qualquer alteração legislativa no CTB que tenha como objetivo permitir o parcelamento de multas de trânsito, o que, pelos motivos expostos, discordamos.
Não obstante o posicionamento particular, tramita no Congresso Nacional, desde 1999, Projeto de Lei que pretende possibilitar o parcelamento de multas de trânsito: com origem no Senado, hoje está na Câmara dos Deputados, sob n. 5.488/01, aguardando aprovação na CCJC (http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=34881).
De toda forma, SOMENTE alteração legislativa no CTB é que poderia estabelecer esta divisão da sanção administrativa de trânsito, o que ainda não ocorreu.
Registre-se, inclusive, que muitos Municípios e Estados têm legislado acerca do tema, em completa afronta à competência privativa da União para legislar sobre trânsito (artigo 22, inciso XI, da Constituição Federal), o que tem sido declarado inconstitucional pelo Poder Judiciário, quando provocado – como exemplo, vide as decisões do Supremo Tribunal Federal – STF, ao julgar Ações Diretas de Inconstitucionalidade propostas contra os Estados do Rio Grande do Sul (ADI 3.444 / RS, rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 03/02/06), Rio Grande do Norte (ADI 2.432 / RN, rel. Min. Eros Grau, DJ de 26/08/05), Espírito Santo (ADI-MC 3.196 / ES, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 22/04/05) e Santa Catarina (ADI 2.474 / SC, rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 25/04/03).
No âmbito normativo infralegal, a Resolução do Conselho Nacional de Trânsito n. 619/16, que regula o processo administrativo para aplicação da penalidade de multa de trânsito, mantinha consonância com o CTB e, em seu artigo 23, § 3º, proibia o parcelamento das multas; todavia, desde outubro de 2017, tal dispositivo foi alterado pela Resolução n. 697/17, passando a ter a seguinte redação: “O recebimento de multas pela rede arrecadadora será feito exclusivamente à vista e de forma integral, podendo ser realizado parcelamento, por meio de cartão de crédito, por conta e risco de instituições integrantes do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB)”.
Além disso, foi incluído, na Resolução mencionada, o artigo 25-A (com treze parágrafos), estabelecendo os critérios para que as multas sejam parceladas. Em suma, são os seguintes:
I) o parcelamento não foi instituído automaticamente, para vigência em todo o Brasil, mas é facultativo e dependerá da decisão discricionária do órgão ou entidade de trânsito responsável pela multa, o qual poderá firmar, sem ônus para si, acordos e parcerias com as instituições de crédito, devidamente supervisionadas pelo Banco Central do Brasil, podendo, inclusive, serem utilizadas as dependências do órgão de trânsito para prestação do serviço ao cidadão interessado;
II) os encargos e diferenças de valores para o parcelamento recairão sobre o proprietário do veículo, devendo o montante devido ser repassado integralmente ao órgão de trânsito, para promover o licenciamento do veículo (ou seja, não chegou bem a ser um PARCELAMENTO DA MULTA, mas a abertura de uma LINHA DE CRÉDITO específica para esta intenção);
III) haverá a necessidade de envio de relatórios mensais ao DENATRAN, quanto aos parcelamentos efetuados e, na ausência de prestação de contas, poderá ser suspensa a autorização para este tipo de movimentação financeira pelo órgão;
IV) o parcelamento pode englobar várias multas de trânsito e deve levar em consideração a necessidade de cálculo de juros de mora para multas vencidas (artigo 284, § 4º, do CTB), sendo que não podem ser parceladas as multas inscritas em dívida ativa, os parcelamentos inscritos em cobrança administrativa, os veículos licenciados em outra UF e as multas aplicadas por órgãos que não aderiram ao parcelamento.
Ocorre que, de acordo com o § 13 do artigo 25-A, incluído na Resolução n. 619/16, “o DENATRAN ficará responsável por autorizar e fiscalizar as operações dos órgãos de trânsito que adotarem a modalidade de parcelamento com Cartão de Crédito para o pagamento das multas de trânsito, regulamentando as disposições deste artigo”, diante do que foi publicada a Portaria do DENATRAN n. 53/18, a qual, contudo, foi suspensa pela Portaria n. 91/18, inexistindo a regulamentação complementar exigida (pelo menos até o final do mês de maio18).
Conclusões:
1) O parcelamento de multas de trânsito, em essência, é questionável, pois diminui o peso da punição e, consequente, afeta o “estímulo” para a mudança de comportamento do condutor;
2) Para que fosse legítimo, deveria constar de alteração legislativa, o que ainda não ocorreu (apesar da existência de PL neste sentido, em tramitação desde 1999);
3) O CONTRAN regulamentou a possibilidade de parcelamento, mas vinculou a sua viabilidade à norma complementar do DENATRAN, a qual se encontra suspensa (embora o próprio DENATRAN tenha se posicionado oficialmente aos órgãos de trânsito que o parcelamento continua sendo possível, sou da opinião de que o procedimento, na sua integralidade, se encontra suspenso, por ausência da regulamentação complementar exigida).
São Paulo, 31 de maio de 2018.
JULYVER MODESTO DE ARAUJO, Capitão da Polícia Militar de São Paulo, com atuação no policiamento de trânsito urbano desde 1996; Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da PMESP; Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP; Especialista em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de SP; Coordenador de Cursos, Professor, Palestrante e Autor de livros e artigos sobre trânsito.