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Art. 282 - Efetividade das notificações de trânsito, por Julyver Modesto de Araujo

Dentre os princípios constitucionais da Administração Pública, encontra-se o da EFICIÊNCIA, incluído no artigo 37 da Constituição Federal com a Emenda Constitucional n. 19/98 e que, resumidamente, pode ser entendido como a necessidade de que os agentes públicos utilizem adequadamente dos meios e recursos disponíveis, garantindo o melhor custo/benefício, para realizar, com qualidade, as atribuições que lhes competem.

Além de ser um princípio e, por isto, uma base norteadora da atividade estatal, a EFICIÊNCIA é uma peculiaridade atual de qualquer organização que busque melhoria da qualidade na prestação de seus serviços, ao lado de outras duas características que, comumente, são tratadas como sinônimos: EFICÁCIA e EFETIVIDADE.

Enquanto a EFICIÊNCIA está relacionada aos processos e métodos utilizados para consecução dos objetivos, a EFICÁCIA está intimamente ligada à obtenção do resultado que se pretende, de modo que eficaz é aquilo que atingiu o seu propósito.

Não basta, todavia, que os serviços prestados (seja pela iniciativa privada, seja pelo Estado) tenham ocorrido de forma eficiente e eficaz, mas há que se verificar o quanto os seus destinatários realmente estão satisfeitos com o que lhes foi ofertado - e é justamente neste contexto que surge a ideia da EFETIVIDADE, que pode ser explicada como a capacidade de se unir eficiência e eficácia, atendendo aos anseios daqueles para quem os serviços se direcionam; de forma mais simples, também é comum que se diga, simplesmente, que EFETIVO é o real, concreto, verdadeiro.

Tais conceitos podem ser concebidos tanto na área da gestão, quanto na área jurídica, e foram aqui simploriamente apresentados para, diante do título utilizado para este texto, entender justamente o que quis dizer com a “efetividade das notificações de trânsito”: como os órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito podem (e devem) cumprir sua obrigação legal de notificar os cidadãos, acerca da imposição das penalidades de trânsito, de forma a conciliar o seu dever de punir com a proteção dos direitos dos cidadãos (em especial o de ampla defesa)? Como atender ao princípio da eficiência e, ao mesmo tempo, ser eficaz, garantindo, com o menor custo, que o cidadão, realmente, tome conhecimento daquilo que lhe está sendo imputado pelo órgão de trânsito e possa disso se defender?

A reflexão acerca destas questões será crucial para responder a dúvidas frequentes entre os profissionais do trânsito e, mesmo, para a inovação no processo administrativo respectivo, dentre as quais destaco:

1) É obrigatória (ou não) a expedição de Notificação postal com Aviso de Recebimento?

2) É possível criar outros tipos de Notificação que não seja por remessa postal, como pela homepage do órgão de trânsito, por endereço eletrônico (e-mail), mensagem de texto (SMS) ou aplicativos de mensagens (whatsapp)?

Duas premissas são importantes para nossa análise: a primeira reside na avaliação dos direitos constitucionais relacionados ao tema e, num segundo momento, a constatação sobre a evolução da interpretação normativa ao longo do tempo.  

Na Constituição Federal, o artigo 5º prevê, em dois de seus incisos, os direitos e garantias fundamentais que devem ser assegurados para o processo administrativo: no inciso LIV, a prescrição de que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” e, no dispositivo subsequente, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Embora a exigência de se seguir a lei pré-estabelecida (e não a vontade pessoal), para a privação de liberdade e de bens, tenha origem antiga, desde a primeira Constituição na Inglaterra (em 1215), no âmbito administrativo a discussão é relativamente recente – no Brasil, tais disposições foram trazidas somente após a CF de 1988, que passou a prever, como exposto: I) a necessidade de se atender a uma lei própria e um rito processual específico (devido processo legal); e II) a possibilidade de que todo aquele que é acusado, inclusive em âmbito administrativo, apresente suas alegações contrárias, de modo a se defender (e recorrer) de eventual penalização (contraditório e ampla defesa).

Destarte, estes são os direitos constitucionais que constituem a premissa inicial para conceber a efetividade das notificações de trânsito: qualquer que seja a forma utilizada, ela somente será CORRETA e VÁLIDA se forem preservados tais direitos.

Quando se discute, por exemplo, a exigência (ou não) de Aviso de Recebimento para a remessa postal das notificações de trânsito, o que se tem que levar em consideração (na minha opinião) não é o MÉTODO utilizado (AR, propriamente dito), o qual, aliás, é muito mais oneroso à Administração Pública (e, consequentemente, a toda a sociedade) e sim o OBJETIVO alcançado, que é garantir a EFETIVA NOTIFICAÇÃO e a garantia do direito de defesa.

Até porque se houver FALHA na notificação, ao menos no processo administrativo para imposição da multa de trânsito, a regulamentação em vigor já estabelece um remédio para a situação fática: refazer o ato (artigo 28 da Resolução n. 619/16). E este é um preceito de suma importância, pois, mais importante que cancelar ou não uma penalidade, a falta de notificação deve, a meu ver, ser suprida exatamente para garantir qualquer direito que tenha sido negado ao cidadão: indicar o condutor, pagar multa com desconto, elaborar sua defesa prévia ou recorrer.

Pergunta para reflexão: Considere que dois órgãos de trânsito enviam suas correspondentes notificações, por remessa postal, a um mesmo proprietário de veículo - um com AR e outro sem AR - e que ambas cheguem normalmente ao seu destino. Foram eficazes? E foram eficientes?

Esta é a diferença: Ambos tiveram eficácia, posto que atingiram o objetivo, mas eficiente será o que gastou menos, o que garantiu os direitos do cidadão com menor custo a toda a sociedade.

Particularmente, sou totalmente contrário à expedição do Aviso de Recebimento, pelos seguintes motivos:

I – falta de previsão legal, já que as Resoluções do Contran n. 619/16 (multa) e 723/18 (suspensão e cassação) não preveem o AR (a Administração pública deve atender ao princípio da legalidade estrita, fazendo apenas o que está descrito expressamente na lei – artigo 37 da CF);

II – encarecimento desnecessário (e exorbitante) da remessa postal, com utilização inadequada do dinheiro público – por mais que alguns defendam que o dinheiro de multa deva ser utilizado no próprio sistema de processamento, é lógico que existem MUITAS outras prioridades que merecem nossa atenção (ressalta-se que a realização de despesas não autorizadas em lei caracteriza ato de improbidade administrativa, conforme artigo 10, inciso IX, da Lei nº 8.429/92); e

III – a utilização de AR também não dá total garantia de que o proprietário será realmente notificado (já julguei recursos em que o interessado alegava que foi justamente o AR que impediu o seu conhecimento sobre a autuação/penalidade, pois a correspondência não foi deixada na caixa de Correios em sua residência, durante o período de sua ausência) – ou seja, além de NÃO ser EFICIENTE, também nem sempre é EFICAZ.

Vou além: nos dias atuais, em que a tecnologia nos facilita as comunicações, em que estamos o tempo todo conectados, em que se discute a preservação dos recursos naturais, não vejo muita lógica em se gastar tanto papel para garantir os direitos que podem ser garantidos de outra maneira: em outras palavras, a única forma de dar EFETIVIDADE às notificações de trânsito será, mesmo, por remessa postal? Ou isso é coisa do século passado?

Nesta análise é que me refiro à evolução da interpretação normativa ao longo do tempo, isto é, a necessidade de dar uma nova compreensão acerca de dispositivos legais existentes, o que é perfeitamente normal e compreensível, tendo em vista que, mais importante que a leitura do que está escrito na norma jurídica é conseguir dela extrair o que se esperava quando ela foi redigida.

Exemplifico: quando o legislador constituinte, em 1988, estabeleceu, no inciso XII do artigo 5º que “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas...”, muito provavelmente estava se referindo às cartas enviadas pelos Correios (além das comunicações por telégrafo, que nem mais existem); tal inviolabilidade não se referia, obviamente, às mensagens enviadas eletronicamente por meio da rede mundial de computadores (o que, à época, ainda nem eram usuais); oras, se hoje, entendermos que o e-mail é inviolável, por conta deste dispositivo constitucional, estamos dando uma nova interpretação normativa, evoluindo-a ao longo do tempo, buscando aplicar-lhe a finalidade que dela se esperava desde o seu surgimento.

De igual sorte, o artigo 19 da Lei n. 9.099/95 (Juizados Especiais Cíveis) estabelece que “as intimações serão feitas na forma prevista para citação, ou por qualquer outro meio idôneo de comunicação” – com toda a certeza, em 1995, nem seria possível cogitar ser meio idôneo de comunicação o que a maioria de nós hoje utilizamos: mensagens de celulares por meio de aplicativos do tipo whatsapp e telegram.

A migração de processo físico para processo eletrônico já é uma realidade no Poder Judiciário há um bom tempo, merecendo destaque a Lei n. 11.419/06 (informatização do processo judicial) e a Resolução CNJ 185/13 (Processo Judicial Eletrônico), mas algo que me despertou atenção recentemente e que tem relação com o apontado, foi um caso interessante do Estado de Goiás, em que se discutiu exatamente este artigo 19, acima transcrito: por meio da Portaria Conjunta 01/2015, de Piracanjuba/GO, o Judiciário e a OAB criaram um protocolo de citação por meio do aplicativo whatsapp, desde que atendidos determinados critérios (após ter sido barrada pelo Tribunal de Justiça estadual, o Conselho Nacional de Justiça reconheceu a validade da Portaria, por meio do PCA CNJ 0003251-94.2016.2.00.0000).

Qual seria, portanto, o empecilho de se emitir as notificações de trânsito por meio de mensagens eletrônicas? O que impediria, por exemplo, de os próprios interessados, ao registrarem seus veículos ou CNH, cadastrarem seus telefones ou ­e-mails, manifestando interesse de serem notificados desta maneira? Aliás, como a maioria dos consumidores já faz com vários dos serviços prestados às suas residências (água, luz, telefone etc).

A Lei, inclusive, permite a mudança de paradigma: de acordo com o artigo 282 do CTB, “aplicada a penalidade, será expedida notificação ao proprietário do veículo ou ao infrator, por remessa postal ou por qualquer outro meio tecnológico hábil, que assegure a ciência da imposição da penalidade” (na minha leitura, a expressão final “que assegure a ciência da imposição da penalidade” refere-se, tão somente, a “outro meio tecnológico hábil”).

Recentemente, em 2016, o CTB teve incluído o artigo 282-A, que passou a prever, com redação um pouco diferente, a possibilidade de notificação eletrônica: “o proprietário do veículo ou o condutor autuado poderá optar por ser notificado por meio eletrônico se o órgão do Sistema Nacional de Trânsito responsável pela autuação oferecer essa opção”.

O problema, atualmente, é que o Conselho Nacional de Trânsito resolveu limitar, como ÚNICA possibilidade, a contratação, pelos órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito, de um Sistema (SNE) criado e gerenciado por uma Empresa pública do Governo Federal (SERPRO):

Resolução do Contran n. 622/16

Art. 2º O Sistema de Notificação Eletrônica é o único meio tecnológico hábil, de que trata o caput do art. 282, do Código de Trânsito Brasileiro - CTB, admitido para assegurar a ciência das notificações de infrações de trânsito ...

Ressalta-se, inclusive, que a Resolução n. 622/16 revogou a Resolução n. 488/14, que permitia a criação da caixa postal eletrônica oficial (e-CPO), como forma de notificação eletrônica.

Há, hoje, um grave problema, inclusive, com esta limitação: por se tratar de uma OPÇÃO que o órgão de trânsito pode oferecer ou não e considerando que a SERPRO cobra pelos serviços prestados, a notificação eletrônica NÃO É REALIDADE na maioria dos órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito e, por este motivo, o proprietário de veículo está DEIXANDO DE TER O DIREITO de pagar a multa por 60% do seu valor, nos termos do artigo 284, § 1º, do CTB.

Isto quer dizer que, na prática, esta “reserva de mercado” está impedindo a efetividade das notificações eletrônicas de trânsito, como meio substituto à remessa postal, já que não está atingindo o objetivo previsto em lei, nem protegendo o interesse coletivo.

O mais interessante é que NÃO HÁ uma padronização quanto à FORMA dos autos de infrações e das notificações físicas expedidas pelos órgãos e entidades de trânsito, existindo apenas padronização das INFORMAÇÕES que deles devem constar (Portaria do Denatran n. 59/07 e Resolução do Contran n. 619/16): além dos talões eletrônicos (já regulamentados), há órgãos fiscalizadores que usam talões físicos de AUTOS DE INFRAÇÕES do tamanho de folha A4, outros usam metade deste tamanho, alguns com folha carbonada, outros com carbono no meio; idem para os diferentes formatos de NOTIFICAÇÕES; por qual motivo, não se deixa também a critério de cada órgão e entidade de trânsito como deseja realizar a notificação ELETRÔNICA, desde que ASSEGURE A SUA CIÊNCIA, ou seja, desde que garanta a sua EFETIVIDADE?

Por fim, será que o Sistema Nacional de Trânsito está sendo EFICIENTE e EFICAZ?

São Paulo, 30 de agosto de 2018.

JULYVER MODESTO DE ARAUJO, Capitão da Polícia Militar de São Paulo, com atuação no policiamento de trânsito urbano desde 1996; Conselheiro do CETRAN/SP desde 2003; Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da PMESP; Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP; Especialista em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de SP; Coordenador de Cursos, Professor, Palestrante e Autor de livros e artigos sobre trânsito.

 
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