Art. 123 - Lei da Desburocratização e os Reflexos para Órgãos de Trânsito
O Diário Oficial da União de 09 OUT18 publicou a Lei n. 13.726/18, conhecida como “Lei da desburocratização”, a qual “racionaliza atos e procedimentos administrativos dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e institui o Selo de Desburocratização e Simplificação”.
Com o veto ao artigo 10, que estabelecia vigência imediata, a ausência da informação quanto à data em que suas regras entrarão em vigor nos remete ao disposto no artigo 1º do Decreto-lei n. 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro): “salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada”; ou seja, a partir do dia 23NOV18, os órgãos públicos brasileiros deverão seguir as novas regras estabelecidas pela Lei sob comento.
Para compreensão do objetivo normativo, cabe destacar o constante do artigo 1º, segundo o qual, “esta Lei racionaliza atos e procedimentos administrativos dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios mediante a supressão ou a simplificação de formalidades ou exigências desnecessárias ou superpostas, cujo custo econômico ou social, tanto para o erário como para o cidadão, seja superior ao eventual risco de fraude, e institui o Selo de Desburocratização e Simplificação”.
Em relação aos serviços prestados pelos órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito, destaco dois procedimentos que terão de ser reavaliados, frente à alteração legislativa, conforme estabelece o seu artigo 3º, o qual passa a dispensar a exigência de:
I - reconhecimento de firma, devendo o agente administrativo, confrontando a assinatura com aquela constante do documento de identidade do signatário, ou estando este presente e assinando o documento diante do agente, lavrar sua autenticidade no próprio documento; e
II - autenticação de cópia de documento, cabendo ao agente administrativo, mediante a comparação entre o original e a cópia, atestar a autenticidade.
Tanto o reconhecimento de firma quanto a autenticação de cópias de documentos já eram procedimentos delimitados de maneira específica pela Lei n. 9.784/99 (regula o processo administrativo), como algo excepcional (e não como regra), como se verifica no seu artigo 22, §§ 2º e 3º: “salvo imposição legal, o reconhecimento de firma somente será exigido quando houver dúvida de autenticidade” e “a autenticação de documentos exigidos em cópia poderá ser feita pelo órgão administrativo”.
Apesar disso, não é incomum nos depararmos com órgãos públicos exigindo, dos cidadãos, documentos com firmas reconhecidas ou cópias autenticadas, para dar prosseguimento a assuntos de seu interesse junto à Administração, o que, doravante, não mais poderá ocorrer.
Uma das primeiras situações que nos vem à lembrança, quando pensamos na aplicabilidade desta Lei aos serviços de trânsito, é a decorrente da transferência de propriedade de veículo automotor, procedimento que, até os dias atuais, exige do vendedor e comprador providências burocráticas que englobam justamente o que passará a ser isento.
O reconhecimento das assinaturas de ambos, no verso do Certificado de Registro de Veículo (em formulário denominado Autorização para Transferência de Propriedade de Veículo – ATPV), por autenticidade, decorre de regulamentação do Conselho Nacional de Trânsito, no exercício de competência normativa disciplinada no artigo 124, inciso III, do Código de Trânsito Brasileiro (“para a expedição do novo Certificado de Registro de Veículo serão exigidos os seguintes documentos: ... III - comprovante de transferência de propriedade, quando for o caso, conforme modelo e normas estabelecidas pelo CONTRAN;”), mais especificamente na Resolução n. 310/09, que alterou os modelos e especificações do CRV e CRLV e assim passou a determinar, entre outros itens, que “é obrigatório o reconhecimento de firmas do adquirente e do vendedor, exclusivamente na modalidade por AUTENTICIDADE”.
Aliás, cabe apontar uma curiosidade, presente até hoje nos documentos de transferência de propriedade de veículo: o formulário da ATPV menciona o artigo 369 do Código de Processo Civil, como a base legal para o reconhecimento de firma, quando o CPC vigente era o de 1973, substituído anos depois, em 2015, pela Lei n. 13.105/15 (atual CPC), cujo artigo 411 é que passou a tratar da autenticação de documentos via reconhecimento de firma do signatário pelo tabelião (no exercício das competências determinadas pela Lei n. 8.935/94).
Além da Resolução n. 310/09, que continua em vigor, tal regra também foi mantida na Resolução n. 712/17, que versa sobre o CRV eletrônico, a ATPV eletrônica e a realização de comunicação de venda de veículo ao órgão executivo estadual de trânsito, cujo artigo 4º também prescreve a necessidade de reconhecimento de firma.
Com a entrada em vigor da Lei n. 13.726/18, é de se entender que deverá o Contran rever a regulamentação existente, de vez que não poderá mais exigir esta burocracia por parte dos proprietários de veículos, bastando que, nos termos do artigo 3º, inciso I, da novel legislação, o reconhecimento das assinaturas constantes da ATPV se faça no próprio órgão de trânsito, mediante a comparação com as assinaturas constantes dos documentos de identidade dos interessados, ou mediante a autenticação pelo agente administrativo, se aposta a assinatura no próprio órgão.
Além disso, a comunicação de venda do veículo ao órgão executivo estadual de trânsito (Detran), obrigatória ao antigo proprietário, não mais poderá ser restringida ao encaminhamento de cópia AUTENTICADA do comprovante de transferência de propriedade, devidamente assinado e datado, conforme redação textual do artigo 134 do CTB (e ratificada pelo artigo 7º da Resolução n. 712/17), mas também deverá ser aceita cópia simples, com autenticação de documento pelo agente administrativo responsável, mediante a comparação com o original.
Considerando-se o volume de transferências de propriedade de veículos automotores, em qualquer Estado da federação, é de se supor que tais procedimentos, embora menos burocráticos, criem alguns entraves para que sejam colocados em prática pelos órgãos de trânsito, mas não há dúvidas de que tal situação fática se enquadra perfeitamente na Lei da desburocratização.
Outras duas questões que também serão atingidas pela desburocratização e que, por vezes, alguns órgãos de trânsito adotam procedimentos peculiares, não obstante a norma aplicável, são as seguintes:
Indicação de condutor autuado
O artigo 257, § 7º, do CTB estabelece a indicação do condutor, nas infrações sob sua responsabilidade, em que a identificação do infrator não for imediata, o que é atualmente regulamentado pela Resolução do Contran n. 619/16, a qual trata do processo administrativo para imposição da multa de trânsito.
Neste sentido, o artigo 5º da citada norma prevê os requisitos para o formulário de indicação de condutor e NÃO prevê a necessidade de que a assinatura do proprietário esteja com firma reconhecida (tal regra chegou a ser prevista na Resolução n. 363/10, a qual, entretanto, nem mesmo chegou a vigorar); não obstante, há alguns órgãos de trânsito que exigem o reconhecimento da assinatura do proprietário no formulário.
Se já não era obrigatório o reconhecimento da assinatura, por falta de previsão normativa, agora com muito mais razão é que não poderão os órgãos de trânsito exigir tal procedimento.
Reconhecimento de firma em procurações
Na representação de pessoas físicas, por procuradores, devidamente nomeados pelos interessados, não poderão os órgãos de trânsito, exigir que haja o reconhecimento da assinatura no instrumento de mandato, bastando, como já mencionado, a conferência com o documento original.
A este respeito, vale mencionar que a procuração, enquanto instrumento particular de representação de alguém, encontra previsão legal no artigo 654 do Código Civil, cujo § 2º estabelece que “o terceiro com quem o mandatário tratar poderá exigir que a procuração traga a firma reconhecida”; obviamente, apesar desta prescrição normativa, a partir da Lei da desburocratização, não se admite que tal exigência seja feita pelos órgãos públicos aos cidadãos.
Na apresentação de defesas administrativas e recursos (1ª e 2ª instâncias), por exemplo, estabelece a Resolução do Contran n. 299/08, dentre os documentos a serem juntados, a procuração, quando for o caso (artigo 5º), não havendo menção à necessidade de reconhecimento de firma (embora alguns órgãos de trânsito costumeiramente adotem tal cautela).
Destarte, todavia, não caberá mais se exigir, desta procuração, o reconhecimento da assinatura do outorgante, mesmo quando apresentado a alguém que não seja advogado, de vez que não se exige a capacidade postulatória para o processo administrativo de trânsito (em relação ao advogado, em especial, a desnecessidade de reconhecimento de firma já era uma prerrogativa legal, desde que o CPC de 1973 teve o seu artigo 38 alterado pela Lei n. 8.952/94).
Resta-nos acompanhar, para verificar se os órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito estarão aptos a cumprirem mais esta Lei que procura simplificar a vida dos cidadãos!
São Paulo, 24 de outubro de 2018.
JULYVER MODESTO DE ARAUJO, Capitão da Polícia Militar de São Paulo, com atuação no policiamento de trânsito urbano desde 1996; Conselheiro do CETRAN/SP desde 2003; Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da PMESP; Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP; Especialista em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de SP; Coordenador de Cursos, Professor, Palestrante e Autor de livros e artigos sobre trânsito.