Art. 265 - Cassação da CNH por receptação, descaminho ou contrabando, por Julyver Modesto de Araujo
A Lei n. 13.804/19 é a 35ª Lei de alteração do Código de Trânsito Brasileiro e foi publicada no Diário Oficial da União de 11JAN19, com início de vigência na mesma data; trata-se, infelizmente, de uma mudança totalmente estranha ao escopo da legislação de trânsito e com graves erros redacionais, como será apontado neste texto.
O Projeto de Lei que a originou, de n. 1530/15 e autoria do Deputado Federal Efraim Filho – DEM/PB (bit.ly/PL1530_15), pretendia incluir dois artigos ao CTB, a fim de punir, por meio de restrições ao documento de habilitação, o condutor preso ou condenado exclusivamente pelo crime de contrabando: o 278-A, que previa a suspensão do direito de dirigir (sem estabelecer prazo), como penalidade administrativa de trânsito (citando, inclusive, os artigos 256 e 265 do CTB) ao preso em flagrante; e o artigo 278-B, que continha a cassação do documento de habilitação ao condenado em sentença transitada em julgado, com o prazo de 5 (cinco) anos para possibilitar sua reabilitação (e iniciando-se, novamente, com a Permissão Para Dirigir).
Nas justificativas do PL, o parlamentar apontava que seu objetivo era o de “criar medidas de prevenção e de repressão ao contrabando, em especial (mas não apenas) relacionadas ao produto que é objeto preferencial de tais práticas: o cigarro, responsável por cerca de 68% de todo o contrabando no Brasil”, destacando-se, entre outros argumentos, que:
Observe-se que, em muitos casos, o condutor contrabandista não é “profissional permanente” do crime, mas condutor esporádico. Além do contrabando, ele pode dirigir profissionalmente em outro contexto (ex. pode ser um motorista de táxi ou de caminhão). Quando verificar que poderá perder, por prazo razoável, a fonte básica de seu sustento – já que terá sua licença para dirigir suspensa ou cassada –, ele provavelmente sequer ingressará no crime, ou, no mínimo, pensará duas vezes.
Primeiro questionamento que nos vem à mente: será mesmo que alguém que utiliza o veículo para cometer crimes de receptação, descaminho ou contrabando vai se sentir desestimulado a cometê-los por conta desta punição que se criou? Ou será que, simplesmente, mudará a sua forma de agir? Importante destacar que o passageiro de um veículo, que for autor dos crimes mencionados, não terá a mesma punição, pois a nova lei pune com o impacto sobre a sua licença para dirigir, apenas se ele for o condutor do veículo, o que quer dizer que se pune não o crime em si, mas a utilização do veículo para o crime.
Assim, para ilustrar, se um motorista de ônibus está retornando do Paraguai com vários contrabandistas no interior do veículo e somente estes forem condenados pelo crime praticado (ficando comprovada total isenção de responsabilidade para o condutor), não há que se falar em aplicação da Lei n. 13.804/19.
Enfim, continuemos nossa análise: além das penas impostas ao contrabandista, pretendia o congressista exigir, dos estabelecimentos comerciais, a afixação de aviso com os seguintes dizeres: “É crime vender cigarros e bebidas contrabandeados. Denuncie.”
Com a tramitação do Projeto no Congresso Nacional e posterior envio ao Poder Executivo, para sanção, a ideia original foi um tanto quanto modificada, retirando-se a obrigatoriedade imposta aos revendedores de cigarros e bebidas, e mudando o texto que se pretendia para o CTB.
Quanto à exigência a ser imposta às pessoas jurídicas, a retirada do texto legal decorreu de veto do Presidente da República, que se manifestou por meio das razões a seguir:
“A sobrecarga de deveres ao particular na condução da empresa pode redundar um risco ao livre exercício da atividade econômica, princípios consagrados nos artigos 170 e 171 da Constituição. Ademais, sob o prisma dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, os dispositivos estabelecem obrigação que não se mostra coerente com a lógica de desoneração que deve reger a relação do Estado para com os cidadãos.”
Em relação à inclusão de penalidades ao condutor, o que era pra ser desdobrado em dois artigos restou consignado, durante a tramitação legislativa, em apenas um (artigo 278-A), ampliando o seu alcance também para os crimes de descaminho e receptação, nos seguintes termos:
Art. 278-A. O condutor que se utilize de veículo para a prática do crime de receptação, descaminho, contrabando, previstos nos arts. 180, 334 e 334-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), condenado por um desses crimes em decisão judicial transitada em julgado, terá cassado seu documento de habilitação ou será proibido de obter a habilitação para dirigir veículo automotor pelo prazo de 5 (cinco) anos.
§ 1º O condutor condenado poderá requerer sua reabilitação, submetendo-se a todos os exames necessários à habilitação, na forma deste Código.
§ 2º No caso do condutor preso em flagrante na prática dos crimes de que trata o caput deste artigo, poderá o juiz, em qualquer fase da investigação ou da ação penal, se houver necessidade para a garantia da ordem pública, como medida cautelar, de ofício, ou a requerimento do Ministério Público ou ainda mediante representação da autoridade policial, decretar, em decisão motivada, a suspensão da permissão ou da habilitação para dirigir veículo automotor, ou a proibição de sua obtenção.
Os crimes acima mencionados estão previstos no Código Penal (e não no CTB), conforme transcrição abaixo:
Receptação
Art. 180. Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Descaminho
Art. 334. Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
Contrabando
Art. 334-A. Importar ou exportar mercadoria proibida:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 ( cinco) anos.
Para melhor compreensão do assunto, cabe destacar que a diferença entre descaminho e contrabando, conforme os próprios dispositivos penais, reside no tipo de produto que está sendo trazido para o Brasil (ou levado para outro país): se o produto for LEGAL e a irregularidade constatada se der apenas por conta de sonegação fiscal, trata-se de descaminho; se, entretanto, o produto for ILEGAL, trata-se de contrabando. No caso de cigarro, em especial (que era o mote principal da alteração legislativa), normalmente, configura descaminho, por se tratar de uma droga lícita no Brasil, exceto em alguns casos de proibição legal, quando será considerado como contrabando.
Neste sentido, dois exemplos comuns de contrabando são a importação de cigarro de marca: I) não comercializada em seu país de origem ou, então, II) comercializada por fabricantes ou importadores que tiveram o seu registro cancelado, pois, em ambas as situações, existe vedação prevista em lei:
Lei n. 9.532/97
Art. 46. É vedada a importação de cigarros de marca que não seja comercializada no país de origem.
Decreto-Lei n. 1.593/77, com alteração da Lei n. 12.715/12
Art. 2º-D. É vedada a produção e importação de marcas de cigarros anteriormente comercializadas por fabricantes ou importadores que tiveram o registro especial cancelado conforme disposto no art. 2º.
Apesar de, entretanto, a propositura ter se iniciado para combater o contrabando, principalmente de cigarros, a forma como foi aprovada ampliou sua aplicabilidade para todos os casos de cometimento de contrabando, descaminho ou receptação, o que significa dizer, por exemplo, que, se um condutor for abordado com um celular roubado dentro de seu veículo e for condenado pelo crime de receptação, estará sujeito à pena ora prevista; tal sanção não se aplica, todavia, se, em vez da receptação, o indivíduo for condenado pelo roubo do aparelho ou, então, se o próprio veículo conduzido for o objeto da receptação.
Pois bem: o fato é que a Lei passou a prever penas acessórias àquele que comete um dos três crimes mencionados, com a utilização de veículo, diferenciando a conduta criminosa conforme o meio utilizado para a sua prática. E o que esta proposta tem a ver com a legislação de trânsito, a ponto de ter sido alterado o CTB (e não o Código Penal)? Este é o primeiro ponto de minha crítica: não vislumbro correta ação legislativa nesta estratégia, tendo em vista que não se tratam de crimes DE TRÂNSITO, o que, aliás, obrigará o Juiz, quando da decisão acerca dos respectivos processos criminais, lembrar-se que há, fora do Código Penal, uma pena a mais a ser aplicada (de forma cumulativa), a depender de como o crime foi praticado, com ou sem veículo.
Importa frisar, também, a completa desnecessidade desta adequação legislativa, pois, se em determinado processo, o Poder Judiciário entender como cabível a suspensão da licença para dirigir concedida pelo Estado, em qualquer crime, basta impor esta pena restritiva de direitos, nos casos em que for aplicável a substituição da privação da liberdade, já que o CP prevê, textualmente, este tipo de pena de “interdição temporária de direitos”:
Código Penal
Art. 43. As penas restritivas de direitos são:
...
V - interdição temporária de direitos;
Art. 47. As penas de interdição temporária de direitos são:
...
III - suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículo.
Outra questão interessante é que o artigo 278-A não detalhou se a novidade atinge todo e qualquer veículo (uma bicicleta, por exemplo), ou apenas um veículo automotor, o que será objeto de discussão doutrinária e jurisprudencial.
Além do equívoco do Código alterado: qual é a relação do tema com o Capítulo XVII do CTB (Das medidas administrativas), onde foi incluído? Absolutamente nenhuma, havendo, inclusive, uma confusão nos termos utilizados, posto que o Código de Trânsito trata da cassação (e da suspensão) de duas formas distintas:
I) como penalidades administrativas, impostas pela autoridade de trânsito e constantes do Cap XVI (suspensão do direito de dirigir, cassação da Carteira Nacional de Habilitação e cassação da Permissão para Dirigir – artigo 256, incisos III, V e VI); e
II) como sanção criminal, imposta pelo juiz, aos crimes de trânsito, conforme Cap XIX (suspensão ou a proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor – artigo 292).
De proêmio, vemos que a nova Lei misturou os termos acima, prevendo cassação do documento de habilitação (até então não atribuída ao juízo criminal) e proibição de se obter a habilitação.
Não obstante, independente da expressão utilizada, a questão é que não faz qualquer sentido prescrever, no Capítulo de medidas administrativas do CTB, uma pena acessória a crimes constantes do Código Penal, a qual deverá, indubitavelmente, ser aplicada pelo Poder Judiciário, a quem caberá decidir sobre a punição que deva ser atribuída ao criminoso (ou seja, nem mesmo há qualquer competência administrativa, dos órgãos de trânsito, para se decidir sobre a pena a ser imposta para estes crimes).
Tenho brincado com esta péssima mudança legislativa do CTB, dizendo que parece aquela piada em que a pessoa entra no edifício errado e, quando acessa o elevador, é questionado pelo ascensorista em qual andar ele vai, ao que responde: “tanto faz, já estou no edifício errado mesmo”. Neste caso, o edifício errado é o CTB e o andar escolhido, parece que aleatoriamente, foi o XVII.
Feitas estas considerações, analisemos outros equívocos do artigo 278-A:
O caput estabelece que o condutor condenado, em decisão judicial transitada em julgado (isto é, que não cabe mais recurso), terá cassado seu documento de habilitação ou será proibido de obter a habilitação para dirigir veículo automotor pelo prazo de 5 (cinco) anos.
Observe que a redação legal, com o uso da conjunção ‘ou’, permite uma dupla interpretação: o que ocorrerá pelo prazo de 5 (cinco) anos? Apenas a proibição de obter a habilitação (para aqueles que, obviamente, ainda não são habilitados) e, neste caso, a cassação do documento de habilitação seguiria o padrão estabelecido no artigo 263 do CTB (cujo § 2º prevê o prazo mínimo de 2 anos após sua imposição, para se requerer a reabilitação) ou também para a cassação (e, com esta opção, passamos a ter um novo “tipo de cassação”, que exige um tempo maior de espera para a regularização da situação do condutor)?
Infelizmente, o § 1º, que completa a informação quanto à penalidade, também não esclarece a dubiedade, já que, ao estabelecer que “o condutor condenado poderá requerer sua reabilitação, submetendo-se a todos os exames necessários à habilitação, na forma deste Código”, deixa em aberto qual é o prazo que se deve esperar: o da cassação prevista no artigo 263 (dois anos) ou o que se encontra mencionado no caput, após a menção à pena de proibição de se obter a habilitação (cinco anos)?
Vale reiterar, ainda, que não existe no CTB a pena criminal de “cassação do documento de habilitação ou proibição de se obter a habilitação para dirigir veículo automotor” e, neste aspecto, também houve uma inovação, tendo em vista que, até então, o que existia, para os crimes de trânsito, era a “suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação”, com duração variável de dois meses a cinco anos (artigo 293).
No § 2º, mais uma impropriedade (e, consequentemente, outra confusão): para o preso em flagrante, pelo cometimento destes crimes, o juiz poderá, a qualquer momento, se necessário para a garantia da ordem pública, decretar a “suspensão da permissão ou da habilitação para dirigir veículo automotor, ou a proibição de sua obtenção”. Qual o prazo (já que não se prevê taxativamente)? Exatos cinco anos, conforme o caput ou variável, de dois meses a cinco anos, conforme artigo 293? Ademais, por que se optou, aqui, utilizar a palavra suspensão, em vez de cassação? A distinção é propositalmente técnica ou decorrente de completo desconhecimento do legislador?
São muitas as questões ainda sem resposta, que veremos, na prática, com o passar do tempo.
Em conclusão, não obstante qualquer vontade positiva do Nobre Deputado, para aumentar o combate à criminalidade em nosso país, reitero minha opinião pessoal, lamentando por mais um remendo mal feito, nesta imensa Colcha de Trapos Brasileira, chamada CTB.
São Paulo, 20 de fevereiro de 2019.
JULYVER MODESTO DE ARAUJO, Capitão da Polícia Militar de São Paulo, com atuação no policiamento de trânsito urbano desde 1996; Conselheiro do CETRAN/SP desde 2003; Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da PMESP; Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP; Especialista em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de SP; Coordenador de Cursos, Professor, Palestrante e Autor de livros e artigos sobre trânsito.