Art. 132 - O Supremo Tribunal Federal e a competência normativa do CONTRAN, por Julyver Modesto de Araujo
Em 10ABR19, o Supremo Tribunal Federal julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2998, impetrada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, contra os artigos 124 (inciso VIII), 128 (caput), 131 (§ 2º), 161 (caput e parágrafo único) e 288 (§ 2º) da Lei n. 9.503/97 - Código de Trânsito Brasileiro (sessão de julgamento disponível em http://bit.ly/ADI2998).
Resumidamente, três foram os assuntos em pauta:
1) Se constitui ofensa ao direito de propriedade o fato de o CTB vincular o licenciamento anual à prévia quitação dos débitos existentes, tanto de multas de trânsito, quanto de impostos (assunto que está constantemente em pauta, quanto ao inadimplemento do IPVA);
2) Se o Conselho Nacional de Trânsito pode criar novas infrações de trânsito e sanções administrativas; e
3) Se é constitucional a exigência de pagamento da multa de trânsito como condição para admissibilidade do recurso administrativo em segunda instância (que, na verdade, não mais existe no CTB, tendo em vista a revogação do § 2º do artigo 288 pela Lei n. 12.249/10).
O Ministro relator, Marco Aurélio Mello, opinou pela IMPROCEDÊNCIA da ação de inconstitucionalidade, em relação aos artigos 124, 128 e 132, entendendo que a limitação do licenciamento à prévia quitação dos débitos é LEGAL e NÃO ofende o direito de propriedade, pois se trata de mero requisito para a continuidade da circulação do veículo na via pública.
Quanto ao caput do artigo 161, segundo o qual "Constitui infração de trânsito a inobservância de qualquer preceito deste Código, da legislação complementar ou das resoluções do CONTRAN, sendo o infrator sujeito às penalidades e medidas administrativas indicadas em cada artigo, além das punições previstas no Capítulo XIX”, entendeu o relator que não há inconstitucionalidade; entretanto, para o parágrafo único ("As infrações cometidas em relação às resoluções do CONTRAN terão suas penalidades e medidas administrativas definidas nas próprias resoluções"), opinou que deve ser dada INTERPRETAÇÃO CONFORME (a Constituição), isto é, que somente pode ser “definida penalidade e medida administrativa”, por meio de Resolução, se A PUNIÇÃO JÁ EXISTIR NA LEI, não podendo o CONTRAN exercer o papel de legislador, CRIANDO SANÇÕES até então inexistentes.
Em relação ao § 2º do artigo 288 ("No caso de penalidade de multa, o recurso interposto pelo responsável pela infração somente será admitido comprovado o recolhimento de seu valor”), o Ministro simplesmente “esqueceu” que tal parágrafo já foi revogado em 2010, pela Lei n. 12.249/10, do que foi alertado, durante os debates, pelo Ministro Ricardo Lewandowski, que disse ter sido informado, naquele instante, pela sua assessoria (a ADI é de 2003 e, portanto, foi fato superveniente, mas é lamentável que o Ministro leve o voto para discussão sem se cercar do cuidado de consultar a lei atualizada; o que é pior: mesmo com os comentários dos outros Ministros, que reconheceram a superveniência, quando questionado pelo Presidente do STF se mudaria o seu relatório, disse que “não tem conhecimento de qualquer revogação do § 2º do artigo 288 e não foi informado pela assessoria, motivo pelo qual manteria a sua conclusão”).
Os Ministros acompanharam, por maioria, o relatório apresentado, retirando-se apenas (por óbvio) o § 2º do artigo 288 do CTB, já revogado, tendo sido considerado prejudicado o pedido.
No tocante ao direito de propriedade, frente aos artigos 124, 128 e 132, o único que defendeu a INconstitucionalidade dos dispositivos e a procedência da ADI, foi o Ministro Celso Mello, que comentou se tratar de uma cobrança forçada dos débitos, mas foi voto isolado; assim, podemos dizer, com a decisão final, que o STF entende como LEGAL a vedação do licenciamento a quem não paga as multas pendentes ou o IPVA de seu veículo.
A “interpretação conforme” para o parágrafo único do artigo 161 foi uníssona, concluindo-se que o CONTRAN não pode criar SANÇÕES NÃO PREVISTAS no Código, mas apenas indicar as que já existem (o Ministro Alexandre de Moraes ilustrou o tema com a infração de velocidade: ela já existe no CTB, mas o CONTRAN tem competência para regulamentar a forma de sua fiscalização, podendo, destarte, apontar que, na inobservância dos limites fixados, a infração será a constante da Lei).
Exemplo interessante: o artigo 148-A do CTB, incluído pela Lei n. 13.103/15, trata da exigência do exame toxicológico para obtenção (ou renovação) da CNH nas categorias ‘C’, ‘D’ ou ‘E’, determinando também um exame intermediário, no meio da validade do exame médico (§§ 2º e 3º); entretanto, não há infração de trânsito respectiva. Neste sentido, o CONTRAN, ao regulamentar a matéria definiu que, quem não fizer o exame intermediário comete a infração do artigo 162, inciso V (“Dirigir veículo com validade da Carteira Nacional de Habilitação vencida há mais de trinta dias”) – artigo 21 da Resolução n. 691/17 (particularmente, discordo, mas é o que foi previsto na norma, na falta de um enquadramento “melhor”). Este seria um exemplo da “interpretação conforme” do parágrafo único do artigo 161: o CONTRAN apenas está direcionando a aplicação do CTB ao que foi determinado pela Lei e, tão somente, regulamentado quanto ao seu efetivo cumprimento.
A discussão sobre a competência normativa do CONTRAN, todavia, ampliou-se também para o caput do artigo 161, a partir de voto do Ministro Lewandowski, acompanhado pelos que o sucederam, tendo sido decidido, por maioria, pela NULIDADE da sua parte final, em que estabelece que “constitui infração de trânsito a inobservância .... DAS RESOLUÇÕES DO CONTRAN”. Desta forma, as condutas infracionais que NÃO CONSTEM do CTB, mas somente de RESOLUÇÃO DO CONTRAN devem ser, doravante, desconsideradas.
A votação em relação ao caput foi, inclusive, apertada, sendo que o Presidente do STF só votou pela inconstitucionalidade para não ter que interromper a discussão e aguardar composição completa do Supremo, tendo expressado, na audiência, que concordava com o relator do processo, o qual opinava pela constitucionalidade, mas foi voto vencido; o contratempo ocorrido é que decisão relativa à constitucionalidade de leis deve ter mínimo de 6 votos no STF, conforme artigo 23 da Lei n. 9.868/99 e, se o Presidente votasse com o relator, empataria em 5x5, pois um dos Ministros da Corte não estava presente e seria o único que poderia desempatar a votação, no caso Min Luiz Fux, o que exigiria a suspensão do processo, nos termos do parágrafo único deste artigo 23.
A decisão de nulidade de parte do artigo 161 merece um olhar mais atento ao que pode ocorrer na prática, tendo em vista que, ao ser declarado nulo o trecho “ou das resoluções do CONTRAN” deste dispositivo legal, se alguém DESCUMPRIR UMA RESOLUÇÃO DO CONTRAN, seu comportamento não poderá mais ser considerado infração de trânsito.
A preocupação que externo reside no fato de que existem DOIS TIPOS de descumprimento de Resoluções do CONTRAN, a depender do tipo de assunto regulado por elas (o que requer uma investigação minuciosa e um conhecimento aprofundado das normas de trânsito):
I – descumprimento de preceito originalmente previsto na LEI e cujas especificações foram tratadas pelo CONTRAN, por meio de ação normativa COMPLEMENTAR, AUTORIZADA PELA PRÓPRIA LEI.
Exemplos:
- artigo 105, que prevê os equipamentos obrigatórios dos veículos, entre outros a serem regulamentados pelo CONTRAN;
- artigo 114, que trata da identificação veicular por meio do número de chassi, reproduzido em outras partes, conforme dispuser o CONTRAN; e
- artigo 139-A, que versa sobre moto-frete, e cujo § 1º estabelece que a instalação ou incorporação de dispositivos para transporte de cargas deve estar de acordo com a regulamentação do CONTRAN.
Assim, se um automóvel não possui estepe, macaco e chave de roda ou se não apresenta a gravação do número sequencial de produção do chassi (a partir do 10º dígito) nos vidros, ou se uma motocicleta utilizada no transporte remunerado de cargas tiver um baú com largura que exceda a distância entre as extremidades internas dos espelhos retrovisores estarão sujeitos, respectivamente, às infrações do artigo 230, IX (falta de equipamento obrigatório), 237 (falta de simbologia exigida pela legislação) e artigo 231, IV (excesso das dimensões fixadas para o veículo ou sua carga), mas tais exigências exemplificadas NÃO ESTÃO na Lei e sim nas Resoluções que a PRÓPRIA LEI autorizou que o CONTRAN elaborasse (respectivamente, Resoluções n. 14/98, 24/98 e 356/10).
Importante destacar que, a rigor, o LEGISLADOR DE TRÂNSITO ERROU, estando o Código de Trânsito Brasileiro CHEIO DE INCONSTITUCIONALIDADES, pois, pelo artigo 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CF/88, “Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a: I - ação normativa; ...”; portanto, não poderia ser delegada ao Conselho Nacional de Trânsito (que faz parte do Poder Executivo) a competência para inovar na ordem jurídica (estabelecer regras novas, de observância obrigatória aos cidadãos). Não estou entrando nem no mérito sobre as vantagens ou desvantagens de se deixar a cargo do órgão técnico a atualização normativa referente ao trânsito (em vez de ficar toda a regulamentação sob responsabilidade do Legislativo), mas apenas apontando uma VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL, lastreada pela tripartição de poderes e as funções precípuas de cada um deles.
II – descumprimento de preceito NÃO CONSTANTE DA LEI, e também NÃO DELEGADO PELA LEI ao CONTRAN, mas que este criou, de forma originária.
Exemplos:
- dispositivos para transporte de crianças em veículos automotores, exigidos pela Resolução n. 277/08 (o artigo 64 do CTB apenas admite a regulamentação complementar do CONTRAN, relativa às exceções para transporte de menores de 10 anos nos bancos dianteiros);
- obrigatoriedade de uso de capacetes de segurança por condutores e passageiros de triciclos e quadriciclos motorizados, constante da Resolução n. 453/13 (ao passo que os artigos 54, 55 e 244 do CTB tratam, apenas, das motocicletas, motonetas e ciclomotores);
- proibição de painéis eletrônicos em veículos (muitas vezes encontrados na parte superior do pára-brisa de caminhões), nos termos do parágrafo único do artigo 9º da Resolução n. 254/07, acrescentado pela Resolução n. 580/16; e
- obrigatoriedade de porte da LADV – Licença para Aprendizagem de Direção Veicular durante aulas práticas ao candidato à habilitação, prevista no artigo 8º da Resolução n. 168/04 (interessante observar, inclusive, que a infração por não portar documentos é taxativa em se vincular ao CTB - art. 232. “Conduzir veículo sem os documentos de porte obrigatório referidos neste Código” - mas o CONTRAN, no Manual Brasileiro de Fiscalização de Trânsito, entende que a falta da LADV caracteriza esta infração).
VEJA BEM: Em todos os exemplos acima, NÃO HÁ delegação expressa da Lei, para que o CONTRAN regulamente a matéria, a não ser que se aceitem argumentos muito mais elásticos para a compreensão desta competência normativa (seja no quesito segurança automotiva, sujeita às normas do CONTRAN, conforme artigo 103, seja na atribuição do Conselho, para regulamentação da formação de condutores, como prescreve o artigo 141). Não obstante, o CONTRAN INOVOU.
A diferença principal é que, no caso dos equipamentos obrigatórios, da numeração do chassi no vidro e da largura do baú de motocicletas, as regras foram fixadas por Resolução, mas a Lei autorizou que o CONTRAN tratasse da matéria expressamente, enquanto que, nestes últimos exemplos, houve uma decisão que se originou no Conselho, criando obrigações e proibições, como se Lei fosse.
Entendendo esta distinção, é de se afirmar que a decisão do STF aplica-se perfeitamente ao segundo tipo de descumprimento de norma do CONTRAN, que é aquela que, originariamente, cria obrigações ou proibições não constantes de lei e NÃO DELEGADAS pelo Legislativo. E ao primeiro tipo? Aplica-se ou não? Se formos seguir fielmente o artigo 25 do ADCT/CF, a resposta seria SIM, mas isso ocasionará uma reviravolta gigantesca na Legislação de trânsito, pois, das 775 Resoluções publicadas entre 1998 e o presente momento (além de algumas poucas em vigor, de antes do atual CTB), existem MUITAS que regulamentam dispositivos do Código e o COMPLEMENTAM com regras nele NÃO constantes, com ou sem autorização legislativa.
Sendo a decisão do STF avaliada de maneira ampla (abrangendo os dois tipos de descumprimento acima citados), todo o arcabouço jurídico de Legislação de trânsito teria que ser revisto, inserindo na própria LEI todas as regras de comportamento voltadas aos cidadãos em geral e reservando ao CONTRAN apenas as normas procedimentais para funcionamento do Sistema Nacional de Trânsito (e.g. diretrizes para funcionamento da JARI, integração do município ao SNT ou regras do processo administrativo de multa e suspensão) e, em poucos casos, a repetição de normas legais, com a simples indicação das penalidades e medidas administrativas cabíveis a cada caso, na “interpretação conforme” do STF, dada ao parágrafo único do artigo 161, mas SEM extrapolar o texto legal (isto é, fazendo um trabalho de direcionamento da aplicação do CTB).
Outro aspecto que deveria ter sido debatido na sessão de julgamento (e não o foi) é o seguinte: uma decisão de inconstitucionalidade de uma Lei possui, conforme artigo 28 da Lei n. 9.868/99, EFICÁCIA CONTRA TODOS (o que é representado pela expressão em latim “erga omnes”) e EFEITO VINCULANTE em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal. É como se, a partir da decisão do STF, aquilo que foi considerado inconstitucional passasse a NÃO MAIS EXISTIR. Assim, o artigo 161 passa a definir infração de trânsito como a inobservância de qualquer preceito DESTE CÓDIGO OU DA LEGISLAÇÃO COMPLEMENTAR, sem referência às Resoluções do CONTRAN (cabendo aqui o questionamento anterior, quanto ao alcance deste entendimento, se só ao segundo tipo de descumprimento da norma ou a ambos).
Se NÃO MAIS EXISTE o dispositivo considerado inconstitucional, a pergunta que fica é: desde quando? Desde a decisão ou desde sempre? E este é o problema, pois, em regra, uma decisão em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade tem efeito “ex tunc”, que significa DESDE O INÍCIO e, se assim o for, TODAS AS MULTAS APLICADAS com base, unicamente, em descumprimento de preceitos constantes de Resoluções serão NULAS, cabendo recursos e até devolução de quantia paga. Só existe uma saída para que não ocorra uma avalanche de reclamações administrativas e judiciais: o Supremo decidir que, neste caso, a decisão só vale de agora em diante, nos termos do artigo 27 da Lei n. 9.898/99: “Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”, dando-lhe, desta forma, o efeito “ex nunc” (daqui em diante). E isto NÃO FOI COLOCADO EM VOTAÇÃO DURANTE A SESSÃO DE 10/04.
Como a decisão em Ação Direta de Inconstitucionalidade é IRRECORRÍVEL e o único instrumento cabível, neste momento, chama-se EMBARGOS DE DECLARAÇÃO (artigo 26 da Lei n. 9.868/99), que servem para I - esclarecer obscuridade ou eliminar contradição; II - suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o juiz de ofício ou a requerimento; e III - corrigir erro material (artigo 1.022 do Código de Processo Civil), este deve ser o caminho, em minha opinião, a ser adotado pela União, para melhor aplicação da decisão do STF à legislação de trânsito em vigor, com os seguintes questionamentos:
1º) A decisão aplica-se também às Resoluções criadas com autorização legislativa? É fato que corremos o risco, ressalte-se, de que a decisão do STF, pura e simplesmente pautada na Constituição, desconstrua toda a sistemática que vem sendo adotada na combinação CTB E RESOLUÇÕES.
2º) Quais são os efeitos da decisão? Ex tunc ou ex nunc?
O tempo urge, pois, após a publicação do acórdão (que pode ocorrer em até 60 dias do julgamento, conforme Resolução do STF n. 536/14), o prazo para interpor os embargos de declaração é de apenas 5 dias, sendo de fundamental importância para garantir a segurança jurídica das normas viárias.
São Paulo, 22 de abril de 2019.
JULYVER MODESTO DE ARAUJO, Capitão da Polícia Militar de São Paulo, com atuação no policiamento de trânsito urbano desde 1996; Conselheiro do CETRAN/SP desde 2003; Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da PMESP; Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP; Especialista em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de SP; Coordenador de Cursos, Professor, Palestrante e Autor de livros e artigos sobre trânsito.