Art. 254 - 22 anos de Código de Trânsito Brasileiro, por Julyver Modesto de Araujo
O comportamento de motoristas e pedestres tem demonstrado despreparo e inadequação de posturas frente ao trânsito tanto nas cidades como nas estradas.
Os instrumentos legais e institucionais do poder público têm se mostrado defasados no tempo, na escala e na técnica frente a urgência e complexidade da matéria.
A ação desarticulada de muitos órgãos públicos, duplicando esforços, pulverizando responsabilidades, tem resultado num uso incrível de recursos humanos e financeiros.
As estatísticas de acidentes de trânsito, ou mais drasticamente, os números de brasileiros mortos e feridos superam até 10 vezes os números observados em países Europeus e da América do Norte.
A inadequação tanto da legislação como da justiça às reais demandas do Sistema de Trânsito, exponencialmente crescentes em função do maciço e privilegiado uso do automóvel como meio de transporte têm, juntamente com a falta do sentimento de cidadania, estimulado o desrespeito à lei com consequente crescimento da violência no trânsito.
O texto acima, embora pareça atual, é um trecho da Exposição de motivos do (então) Ministro da Justiça, Sr. Mauricio Correa, ao apresentar o Projeto de Lei do Executivo n. 3.710/93, em 20MAI93, à Câmara dos Deputados, o qual resultaria, 4 anos depois, na aprovação do 4º Código de Trânsito do Brasil, que passou a se chamar CTB, em substituição ao CNT – Código Nacional de Trânsito, de 1966. Registre-se que citado Projeto havia sido cuidadosamente elaborado por uma Comissão Especial criada em 1991, por Decreto s/n, de 06JUN91, assinado pelo Presidente em exercício Itamar Franco, com o objetivo de conter o crescimento da violência no trânsito.
No dia 22 de janeiro de 2020, completamos 22 anos de vigência do atual CTB, instituído pela Lei n. 9.503/97, publicada em 23SET97 e em vigor a partir de 22JAN98, conforme prazo determinado em seu artigo 340.
22 anos depois, tendo sido alterado por 38 outras Leis e complementado por 780 Resoluções do Conselho Nacional de Trânsito, importante refletirmos sobre algumas questões: “O nosso Código de Trânsito está adequado às necessidades sociais e com foco à segurança viária”? “As normas nele fixadas estão sendo efetivas para a mudança do quadro alarmante que se pretendia combater em 1991, quando se deu iniciou à sua elaboração”? “Estas alterações e complementos realmente melhoraram a nossa legislação de trânsito”?
Interessante observar, nesta retrospectiva histórica, que a 1ª das 38 Leis a alterarem o CTB surgiu antes mesmo que ele entrasse em vigor: quando o Presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei n. 9.503/97, decidiu vetar alguns dispositivos do Projeto que lhe foi devolvido pelo Congresso Nacional, a partir do anteprojeto criado pela Comissão Especial do Poder Executivo; destarte, as razões de veto e a análise do Executivo acerca do novo Código resultaram em mais um Projeto encaminhado ao Congresso, para alguns ajustes pontuais no CTB, que acarretou na publicação da Lei n. 9.602/98, em 21JAN98, ou seja, um dia antes do início da sua vigência.
Assim, o nosso atual CTB já começou a valer com alterações publicadas na véspera do seu 1º dia de validade (lembro, inclusive, que, nesta época, eu já trabalhava na fiscalização de trânsito, no Comando de Policiamento de Trânsito da PMESP, e vi um vendedor ambulante, no centro de São Paulo, vendendo o “novo CTB”, ao que pedi pra dar uma olhada e percebi que era um livro de bolso, recém lançado, que continha tão somente a Lei n. 9.503/97, sem as alterações da Lei n. 9.602/98, e tive que explicar ao comerciante que o seu produto já estava defasado).
Apesar da indiscutível necessidade da existência de LEI para possibilitar a vida em sociedade, ao conter os abusos da liberdade individual, em prol do interesse coletivo, há que se perguntar até que ponto há a real exigência de constantes alterações.
Aliás, começamos, há 22 anos, com um Código de Trânsito fruto de um Projeto de Lei do Executivo e, neste ano de 2020, retomaremos a discussão iniciada em 2019, acerca de mais um PL enviado pelo Presidente da República para mudanças na legislação de trânsito: trata-se do PL n. 3.267/19, que se encontra em tramitação em Comissão Especial criada para esta finalidade (com declaração recente presidencial, de que pretende retirá-lo de pauta, por ter sido desfigurado no relatório substitutivo do Dep Fed Juscelino Filho, após as exatas 312 Emendas parlamentares, sendo 228 no período de apreciação inicial e outras 84 ao 1º substitutivo do relator).
No meio deste longo período, em que o CTB começou com mudanças do Executivo (Lei n. 9.602/98) e em que, hoje, nos encontramos na mesma condição (PL n. 3267/19), outras 37 Leis já foram aprovadas para alteração das normas viárias. Já que ninguém pode alegar o desconhecimento de qualquer Lei para deixar de cumpri-la (artigo 3º do Decreto-Lei n. 4.657/42 – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), a maior preocupação, no meu ponto de vista, deve ser a seguinte: a sociedade, em geral, conhece bem a Legislação de trânsito brasileira, para que o seu cumprimento (de forma natural ou imposto pela fiscalização) objetive o resultado que se pretende?
Afinal, a Lei, por si só, não tem o condão de promover mudanças na sociedade, havendo a necessidade de uma real conformação do comportamento humano ao desejável, a partir daquilo que é externado no texto legal, o que representa a essência do Direito, que é o mundo do “dever-ser”.
Infelizmente, parece-me que este pressuposto não é levado em consideração quando analisamos o incessante trabalho legislativo em nossa área (seja nos Projetos com gênese no seu nascedouro originário, que é o Congresso Nacional, seja nas proposituras oriundas do Poder Executivo, tanto quando há o encaminhamento de Projeto de Lei ordinária ou nos diversos casos já ocorridos, de alteração mediante Medida Provisória, a ser chancelada posteriormente pelo Parlamento).
Penso (e tenho defendido esta ideia há bastante tempo) que o ideal seria termos uma legislação mais enxuta, resumida, com menos artigos e, principalmente, sem tantas alterações.
É notório que não se cumpre aquilo que não se conhece. E é óbvio que se torna difícil conhecer aquilo que é complexo e modificado com tanta frequência como tem ocorrido.
Vivemos, lamentavelmente, uma insegurança jurídica enorme, em que, antes mesmo de termos plena ciência do comportamento que a Lei nos determina, já não é mais a mesma norma que se encontra em vigência. Quem ganha com isso? Quem perde com isso?
É claro que sempre haverá o que melhorar, mas há que se considerar o custo/benefício de mudanças tão intensas... ouso dizer que TALVEZ (veja bem: TALVEZ) se estivéssemos comemorando os 22 anos do atual Código de Trânsito Brasileiro, sem absolutamente NENHUMA modificação, mas com os seus iniciais 341 ARTIGOS todos sendo fielmente cumpridos, tanto pelo Poder público, quanto pelos cidadãos, nós teríamos muito mais motivos para nos orgulharmos da nossa legislação de trânsito.
TALVEZ os municípios estivessem todos integrados ao Sistema Nacional de Trânsito, exercendo todas as atribuições determinadas no artigo 24, para a melhoria do trânsito!
TALVEZ a educação para o trânsito em todos os níveis de ensino, exigida pelo artigo 76, já tivesse proporcionado novas gerações de pessoas comprometidas com o trânsito seguro!
TALVEZ a inspeção veicular, exigida pelo artigo 104, estivesse sendo realizada em todos os veículos automotores, retirando de circulação aqueles que não tem mais condições de uso!
TALVEZ os condenados por delito de trânsito estivessem sendo obrigados à realização de novos exames para voltarem a dirigir, como prevê o artigo 160!
TALVEZ os pedestres também estivessem sendo penalizados por comportamentos inseguros, que coloquem a sua própria vida em risco, nos termos do artigo 254!
TALVEZ os infratores contumazes ou aqueles que colocam em risco a segurança do trânsito estivessem sendo submetidos a Curso de reciclagem, independente de suspensão do direito de dirigir, na forma determinada no artigo 268!
Mas tudo isto é TALVEZ, pois, em vez de cumprir o que já existe na Lei, parece-me que muita gente se preocupa em simplesmente alterá-la, achando que esta é a SOLUÇÃO...
PARABÉNS, CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO, PELOS 22 ANOS DE RETALHOS!!!
São Paulo, 20 de janeiro de 2020.
JULYVER MODESTO DE ARAUJO, Consultor e Professor de Legislação de trânsito, com experiência profissional na área de policiamento de trânsito urbano de 1996 a 2019, atualmente Major da Reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo; Conselheiro do CETRAN/SP desde 2003; Membro da Câmara Temática de Esforço Legal do Conselho Nacional de Trânsito (2019/2021); Mestre em Direito do Estado, pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP, e em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública, pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da PMESP; Especialista em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de SP; Coordenador de Cursos, Palestrante e Autor de livros e artigos sobre trânsito.